Esta é a realidade, parafraseando Thomas Mann: o pior dos EUA chegou ao poder. À limpeza étnica da imigração juntou-se a limpeza ideológica da nação, que também está a ser um produto de exportação: quem quiser ter algum tipo de relação com os EUA tem de apresentar um certificado de pureza semelhante ao passaporte genealógico (Ahnenpass) que o regime nazi começou a exigir aos cidadãos depois das Leis de Nuremberga (15 de Setembro de 1935). E há a montanha-russa das tarifas… Os instrumentos desta desenfreada política interna e externa são o abuso de poder e a chantagem, como se as eleições, num Estado de direito, pudessem legitimar ditaduras. Como se os valores e as ideias pudessem ser arrancados por ordens executivas.
A governação caótica, prepotente e desvairada que reina na Casa Branca tem de encontrar limites. Perante o que está a acontecer… alguma coisa terá de acontecer.
O Parque Nacional da cidade de Washington, jardim de memoriais e museus, é dominado pelo imponente Memorial do 16.º Presidente dos EUA: Abraham Lincoln. Sentado no seu cadeirão, Lincoln tem a Casa Branca à esquerda, não muito longe, e ao fundo, depois de um longo lençol de água rectangular e do longilíneo Monumento a Washington, o primeiro Presidente, está o majestoso Capitólio, sede do poder legislativo da nação: o Congresso, formado pela Câmara dos Representantes (Câmara Baixa) e pelo Senado (Câmara Alta). Logo atrás, estão o Supremo Tribunal e a Biblioteca do Congresso, com a sua própria majestade. Lincoln, cuja vida foi regida por valores e princípios ilustrados em murais no interior do Memorial – Moralidade, Liberdade, Justiça, Direito, Unidade, Fraternidade, Caridade… – já se terá interrogado: o Congresso e o Supremo Tribunal não sabem o que se passa na Casa Branca? É que, segundo a Constituição (Artigo II, Secção 4): “O Presidente, o vice-presidente e todos os funcionários públicos dos Estados Unidos serão afastados dos seus cargos em caso de destituição ou condenação por traição, corrupção ou outros crimes graves e má conduta.” É um articulado suficientemente abrangente para não ser indiferente às delinquências da Sala Oval.
Em todo o caso, para grandes males, grandes remédios. A 25 de Janeiro de 2016 foi eleito presidente da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa o então senador espanhol Pedro Agramunt, que era suspeito de envolvimento no Caviargate, um escândalo de corrupção em que vários membros da assembleia alegadamente aceitaram subornos de caviar, tapetes e estadias em hotéis de luxo em Baku, capital do Azerbaijão, para votar contra um relatório sobre a situação dos presos políticos naquele país, em Janeiro de 2013. Já como presidente da assembleia, Agramunt fez uma viagem à Síria em Março de 2017, num avião militar russo, aparecendo em fotografias ao lado do então ditador sírio Bashar al-Assad. A situação tornou-se insustentável, mas o regimento da assembleia era omisso quanto aos procedimentos a adoptar para a destituição de um presidente em exercício. A 8 de Junho de 2017, a Comissão do Regimento, Imunidades e Assuntos Institucionais adoptou um projecto de resolução que, entre outros pontos, estabelecia um procedimento para a destituição do presidente da assembleia, que se aplicaria ao mandato do presidente em exercício, por considerar que, sem a confiança da assembleia, não conseguia desempenhar as suas funções. Agramunt anunciou a sua demissão do cargo a 6 de Outubro de 2017, mas recorreu para o Tribunal Administrativo do Conselho da Europa. O recurso foi considerado “manifestamente inadmissível”.
Nada de semelhante, todavia, poderá acontecer nos EUA, no estado de degradação institucional em que o país se encontra, pois o próprio Supremo Tribunal tem estado envolvido em polémicas semelhantes, na década em curso, com juízes suspeitos de aceitar presentes, viagens, dinheiro, e de outras formas de má-conduta. O excepcionalismo americano protege-os com nomeação vitalícia, politicamente enviesada. Em Julho de 2022, o Campaign Legal Center, organização sem fins lucrativos fundada e presidida por um destacado jurista republicano, publicou um documento intitulado “O papel do Supremo Tribunal na degradação da democracia dos EUA” (The Supreme Court’s Role in the Degradation of U.S. Democracy). Por isso, o seu nível de confiança pública tem declinado nas últimas décadas, sendo de 40% em 2024. As decisões ditadas pela sua actual “super-maioria” republicana tendem a considerar que o chefe da Casa Branca age com respeito pela lei e de acordo com as boas práticas, como se diz por cá… E o Congresso também está dominado e capturado por uma maioria obediente e sem preocupações com valores a que respeitados membros do Partido Republicano têm sido fiéis, no passado e no presente.
Mas a Nação é demasiado grande para se deixar suicidar. Não é de excluir que no Congresso possam ocorrer dissidências favoráveis a iniciativas do Partido Democrático e, no Supremo Tribunal, prevaleça o sentimento cívico e a integridade profissional quando os alicerces constitucionais da Nação estiverem em risco. Entretanto, contra a arbitrariedade e violências da torrente de ordens executivas presidenciais está a ser levantada uma muralha de processos na vasta rede judicial norte-americana, a nível estadual e federal. E se o desvario presidencial não parar, a resistência cívica poderá ir até onde for preciso. Como se lê no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, para que os cidadãos não tenham de “recorrer, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”, os seus direitos “devem ser protegidos pelo Estado de direito”. Mas tudo se pode esperar também de um Presidente que muitos dos seus concidadãos, especialistas em saúde mental, qualificaram como psicopata, sem princípios de coerência e decência, e que é um ‘artista’ a justificar o injustificável, a recuar cantando vitória, a dizer que os seus disparates eram brincadeira… e que está tudo bem.
Seria muito mau para o mundo, tal como está, se o Estado de direito norte-americano sucumbisse à marginalidade política que se apoderou da Casa Branca e, apesar dos seus defeitos e contradições da sua história, deixasse de ser, parafraseando Franklin Roosevelt, um arsenal da Liberdade.
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