A tristeza, a depressão, o luto fazem com que os dentes percam vitalidade, emurcheçam, decaiam? Pelo menos é o que se diz na sequência inicial de “The Shrouds — As Mortalhas”, a querer dar um tom de comédia negra a um filme que não foge a esse labéu, todavia escorrega para fora dele com a plasticidade de qualquer filme de Cronenberg. Porque, logo a seguir, no mais extraordinário diálogo de engate que os meus septuagenários sentidos perceberam em todos estes anos, temos o protagonista a explicar o que faz e o que o obceca à mulher que quer seduzir. A cena decorre num restaurante refinado com vista para um cemitério privado e prossegue, lá em baixo, no terreno. Então, é assim: devastado pela morte da mulher no termo de um arrasador processo de doença oncológica, Karsh/Vincent Cassel imaginou um processo e uma atividade económica que lhe permitisse aplacar a dor do luto e da ausência. Empresaria a produção de uma mortalha eletrónica dotada de câmaras e sensores a envolver o corpo defunto. A sepultura, em cemitério privado controlado pela mesma empresa, tem ligação a ecrã local, mas também a uma aplicação para dispositivo móvel onde é possível visualizar o estado do ente querido. Em processo de decomposição? Claro… A mulher que acompanha Karsh não acha graça… Desaparece de cena. Depois, o cemitério vai sofrer um atentado profanatório, a narrativa pulveriza-se em múltiplas direções, entra-se num processo de deriva em busca de culpados e de uma justificação — e talvez um espectador desavisado considere que o realizador perdeu o fio à meada. Nada mais enganador. Porque o que Karsh vai fazer é confrontar-se com esse corpo que o obceca (ele não estava apaixonado por Becca, estava apaixonado pelo seu corpo, no sentido vicioso, tóxico, dependente). Confrontar-se, em fantasma (são as visões noturnas, terríveis, de Becca estropiada), em ciúme (e se as cirurgias fossem uma forma de traição amorosa de Becca praticada com o seu médico?), em duplo (com a irmã que com ela se assemelha como gotas de água, com a oriental cega que explora corpos pelo tato). E sempre a morte em pano de fundo, fio comum que nos toca a todos.
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