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Pensadores da Escola de Frankfurt como Theodor Adorno e Max Horkheimer alertaram, ainda no pós-guerra, para os perigos de uma democracia que tolera os intolerantes. Em A Personalidade Autoritária, Adorno investigava as raízes sociais e psicológicas do fascismo, enfatizando que as condições que permitiram sua ascensão na Alemanha não desapareceram com o fim da Segunda Guerra. A lição permanece atual: as ameaças à democracia, muitas vezes, emergem dentro dela própria. E o dilema contemporâneo sobre o que fazer com a Alternativa para a Alemanha (AfD) ilustra com clareza esse impasse.
Nas eleições federais de fevereiro de 2025, a AfD conquistou 152 cadeiras no parlamento — um feito inédito que a posicionou como a segunda maior força política do país, com 20,8% dos votos. O partido, fundado em 2013 como uma crítica conservadora ao euro, rapidamente adotou uma retórica nacionalista, anti-imigração e anti-islâmica. Aproximando-se de movimentos como o PEGIDA, a legenda passou a atrair tanto eleitores descontentes quanto grupos de extrema-direita organizados, consolidando sua influência nas ruas e, mais recentemente, nos parlamentos.
Diante desse crescimento, o Estado alemão reagiu. Em maio de 2025, o Escritório Federal para a Proteção da Constituição — agência de inteligência interna da Alemanha — classificou oficialmente a AfD como um partido extremista. Segundo o órgão, a visão de mundo baseada em etnicidade e ancestralidade promovida pelo partido, fere os princípios democráticos consagrados na Constituição do pós-guerra. A decisão não é fruto de mera disputa política: a AfD rejeita abertamente o multiculturalismo, propõe políticas anti-imigração radicais e ataca direitos das minorias e a liberdade de imprensa.
Na última semana, a resposta formal da legenda à classificação de “extremista” pelo serviço de inteligência alemão veio por meio de uma ação judicial. Os líderes Alice Weidel e Tino Chrupalla acusaram o governo de manipular o aparato estatal para marginalizar a oposição, alegando que a decisão visava “distorcer a competição democrática e deslegitimar milhões de votos”. A repercussão internacional foi imediata: o Kremlin e figuras como Elon Musk, Marco Rubio e o vice-presidente norte-americano J.D. Vance acusaram Berlim de instaurar uma “tirania disfarçada” e compararam o cenário à reconstrução simbólica do Muro de Berlim — analogias que, embora infundadas, servem para alimentar o discurso de vitimização da AfD.
Antes mesmo da ação judicial, o partido já enfrentava forte repercussão por declarações controversas de um de seus principais nomes. Maximilian Krah, recentemente eleito para o Parlamento Europeu, afirmou, em entrevista aos jornais La Repubblica e Financial Times, que membros da SS nazista não deveriam ser considerados automaticamente criminosos, defendendo uma avaliação “individual” da culpa. Sua declaração reforçou a percepção de que a AfD não apenas normaliza, mas também relativiza o passado nazista, acirrando o debate sobre os limites da liberdade política na Alemanha.
Assim, cresce o debate sobre a possibilidade — e a legitimidade — de banir a AfD. A Constituição alemã prevê a dissolução de partidos que atentem contra a ordem democrática, como ocorreu com a Sozialistische Reichspartei em 1952. No entanto, o Tribunal Constitucional tem adotado cautela. Em 2017, mesmo reconhecendo a natureza antidemocrática do partido neonazista NPD, recusou sua proibição por considerar que ele não representava ameaça concreta à democracia. O desafio atual, portanto, é que a AfD tem uma base eleitoral sólida, presença institucional robusta e apoio internacional em figuras influentes.
A eventual proibição do partido, contudo, levanta outro dilema: o uso de instrumentos legais contra a extrema-direita reforça a democracia ou corre o risco de corroê-la por dentro. A tradição da Escola de Frankfurt alerta que o combate ao autoritarismo não pode se restringir ao plano jurídico. Ele exige uma cultura democrática ativa, educação crítica, enfrentamento das causas sociais do ressentimento e vigilância constante contra discursos de ódio. Como escreveu Adorno, “a maior ameaça à democracia vem da banalização do autoritarismo no cotidiano”.
Mais do que decidir se deve ou não banir a AfD, a pergunta que se impõe à Alemanha é o motivo pelo qual o partido cresce tanto e encontra tanta ressonância nos dias de hoje. A resposta pode estar tanto nas falhas das democracias liberais em responder às ansiedades contemporâneas quanto em sua incapacidade de se reinventar para proteger a liberdade sem ceder à intolerância.
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