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Aprendi com o meu avô, Oscar Niemeyer (1907-2012), o Dindo — era assim que os netos o chamavam — que “a vida é um sopro”. Eu tinha seis anos quando minha família saiu da cidade do Rio de Janeiro e fomos morar em Brasília, na recém-inaugurada capital, que, neste ano, completou 65 anos
O Congresso Nacional do Brasil está sob forte pressão para aprovar um projeto de anistia que livrará condenados do 8 de janeiro de 2023, dia que entrou para a história como tentativa de golpe de Estado, quando criminosos se auto-intitulando “patriotas” depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), projetados por Niemeyer.
As imagens de vandalismo e terror foram gravadas pelos criminosos e postadas em tempo real nas redes sociais, chocando o país e a mim duplamente, como brasileiro e como neto dele. Fui tomado por um sentimento de revolta e, ao mesmo tempo, senti alívio por ele não estar mais aqui para ver esse brutal ataque à democracia e a suas obras-primas.
Naquele momento fiz o juramento de levar adiante o seu legado, principalmente seus ideais humanitários. Niemeyer era um democrata e lutava contra as desigualdades sociais. Ele ficava indignado ao ver a pobreza se multiplicar e dizia que a arquitetura é injusta, só servindo aos poderosos. É com essa responsabilidade que estou me dedicando a alguns projetos.
Um deles é a produção de um livro de fotografia junto com uma mostra itinerante com as imagens das suas obras em Brasília, a Pampulha, em Belo Horizonte (Minas Gerais), e o Rio de Janeiro, além das 10 maquetes de seus projetos inéditos, que serão construídos em Maricá (RJ), município que ele tanto amava. Será um marco para essa cidade, pois, sendo ele um ícone mundial, suas obras vão atrair turistas e impulsionar a economia local.
Neste domingo (25/05), estarei em Maricá para participar da abertura da exposição com as referidas maquetes. Ele tinha ligações afetivas com Maricá por causa de seu avô paterno, que morou nessa cidade, e era a terra natal de seu pai, Manuel Ribeiro de Almeida, que tinha fazenda lá. O próprio Niemeyer era proprietário da centenária fazenda Bananal, que existe até hoje, à qual estou me dedicando para fazer dela um museu.
Fui acumulando memórias porque, durante 54 anos (desde 1971. quando o acompanhei, em seu exílio voluntário na França, no período da ditadura militar brasileira), trabalhei com ele em seu escritório em Paris. Naquela ocasião, iniciei fotografando as maquetes dos seus projetos. Com ele também aprendi o que é a fotografia de arquitetura, que parte do conceito do profissional para escolher o melhor ângulo para registrar.
Certa vez, em uma entrevista, um jornalista perguntou: “Oscar, o que é a vida?”. Ele respondeu: “A vida é mulher do lado e seja o que Deus quiser”. Todos riram. Depois ele comentou comigo: “Pois é, uma frase egoísta, se lembrarmos que existe miséria, violência, injustiça, tudo de ruim que se multiplica por toda parte. Esse era o meu avô Oscar Niemeyer, o meu inesquecível “Dindinho”.
Essa intensa convivência familiar e profissional serviu para que meu avô me contasse bastidores ocorridos durante a construção de Brasília. Foi em 1957 que o então presidente Juscelino Kubistchek o procurou na Casa das Canoas — projetada por Niemeyer e hoje considerada uma jóia da arquitetura moderna —, onde morávamos no Rio. Queria construir Brasília, e, como ocorreu com a Pampulha, em Belo Horizonte (MG), na década de 1940, desejava a colaboração de Niemeyer.
JK lhe disse que pretendia criar uma capital moderna, “a mais bela do mundo”. Na primeira viagem que JK fez ao Planalto Central, Niemeyer o acompanhou e não teve boa impressão do lugar, “longe de tudo, um terreno vazio”. Mas o entusiasmo de JK e o objetivo de levar o progresso para o centro do Brasil eram tão válidos para ele que acabou concordando. Na ocasião, o ministro da Guerra, o General Lott, perguntou: “Oscar, os prédios do Exército serão modernos ou clássicos”. Ele respondeu: “Numa guerra, o senhor prefere armas modernas ou clássicas?” O militar sorriu.
Meu avô Niemeyer dizia que não foi fácil trabalhar em Brasília. O projeto do Congresso Nacional foi elaborado sem ter uma ideia de como aumentaria o número de parlamentares. “Tudo rápido era a palavra de ordem”. O projeto foi iniciado com ele indo ao Rio com o objetivo de dimensionar o Congresso da então capital federal para, multiplicando a área estimada e os setores existentes, iniciar os desenhos. Isso explica os prédios anexos depois construídos.
Quando impuseram o parlamentarismo para limitar os poderes do presidente João Goulart, em 1961, o hall do Congresso ficou coberto de novas salas e gabinetes, pedindo uma solução. Niemeyer queria defender a arquitetura do Palácio, e o jeito foi aumentar a largura em 15 metros. A vista da Praça dos Três Poderes que do antigo salão se descortinava desapareceu, mas a arquitetura externa do Palácio foi preservada com tanto apuro que ninguém percebe, mas ele, como arquiteto, lamentou a vida inteira.
O primeiro projeto iniciado foi o Palácio da Alvorada, cuja localização ainda não fora fixada pelo Plano Piloto. Como tudo era urgente, Oscar saiu caminhando pelo cerrado, com o capim batendo em seus joelhos, para procurar o melhor local. Outras recordações familiares que me remetem ao Alvorada é que minha mãe, a galerista Anna Maria, única filha dele, decorou esse Palácio e criou alguns móveis de lá.
Posteriormente, ele e sua equipe estudaram o Eixo Monumental, iniciando o projeto pela Praça dos Três Poderes, que incluía o Palácio do Planalto, o do Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional.
Defensor da educação
Outra causa que Oscar Niemeyer defendia com paixão era “acabar com o especialista” — transformar o jovem que sai da escola sem ler um livro, sem saber escrever e falar bem o português, preocupado apenas com os assuntos de sua profissão. Levá-lo à leitura, fazê-lo entender este mundo injusto que devemos modificar.
Sua preocupação aumentou quando, certo dia, um grupo de estudantes estava em seu escritório e ele ouviu uma moça indagar a uma colega: “Você já leu Eça de Queiroz?”. E a outra lhe perguntou: “É filho da Rachel de Queiroz?”. Um diálogo a exibir tanta ignorância que, daquele momento em diante, Niemeyer já centenário, passou a considerar a urgência de se intervir no processo de formação da juventude em nosso país.
Ele decidiu reservar as quartas-feiras para promover encontros com os estudantes para explicar as razões da sua arquitetura e também falar de literatura, história, filosofia e arte. O primeiro encontro aconteceu em 2009, com 70 alunos e sete professores da faculdade de arquitetura da Escola da Cidade, sediada na cidade de São Paulo. Do segundo, participaram estudantes e professores pertencentes à Universidade de Brasília (UnB). O terceiro foi realizado no Caminho Niemeyer, no município de Niterói (RJ).
Era um trabalhador incansável e bateu ponto diariamente no seu escritório, em Copacabana, até a idade de 104 anos, quando nos deixou. Não gostava de viajar de avião. E, quando alguém sugeria que ele tirasse umas férias e fizesse um cruzeiro transatlântico, ele sempre contava que “não repetiria essa experiência pois não tinha sido boa”.É que ele viajara de navio para Portugal junto com amigos e, durante 11 dias, desfrutaram bons momentos à beira da piscina e, depois, os bares e cafés. Mas, segundo ele me confessou, nem sempre as conversas de bordo são agradáveis.
Ele se lembrava do dia em que o navio parou em Lisboa e eles ficaram a olhar na televisão os jovens portugueses lavando as estátuas de uma praça, contentes com a queda do salazarismo. E um casal de lisboetas, gente rica, sentado ao seu lado, não se contendo, começou a gritar: “São uns malucos, são uns malucos”. O que o obrigou a intervir: “Malucos, nada, é a queda da ditadura, e isso um dia irá acontecer no mundo inteiro”.
Quem diria que, em 2023, a democracia brasileira seria atacada por uma multidão de vândalos? Portanto, fico imaginando o que diria meu avô Oscar Niemeyer ao assistir as imagens dos golpistas depredando as obras que ele projetou com tanto entusiasmo e amor ao Brasil.
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