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Irão — O Último Regime

Há uma frase recorrente em certos corredores diplomáticos: o Irão é o último regime. Último no sentido literal: o último grande regime teocrático autoritário do Médio Oriente que ainda não caiu, não se reformou nem foi cooptado. Mas também último no sentido simbólico: o último grande bastião de uma ordem revolucionária fora do tempo, que resiste com violência a cada novo século. É nesse contexto – e não noutro – que devemos interpretar o novo conflito aberto entre Israel e o Irão, agora com participação direta dos Estados Unidos, não apenas em retaliação por atos concretos, mas como uma batalha estratégica, longa e potencialmente terminal para um regime cada vez mais cercado, dentro e fora das suas fronteiras.

O que está em causa, como afirmou o chanceler alemão em voz baixa, mas clara, não é apenas a segurança de Israel, mas uma missão de desminagem histórica. Israel faz o “trabalho sujo”, o trabalho estrutural, militar e de dissuasão que outras potências ocidentais preferem delegar, mas que silenciosamente aplaudem. E a razão para isso está menos nas armas nucleares que Teerão possa vir a construir e mais no que o Irão já construiu há décadas: uma rede ideológica, paramilitar e diplomática que sustenta movimentos como o Hezbollah, o Hamas, os huthis ou as milícias xiitas no Iraque e na Síria. Essa rede é uma infraestrutura invisível, mas devastadora, que há muito ultrapassou os limites do Levante e que hoje chega até à América Latina e às prisões europeias.

Por isso, quando se fala de guerra, importa também perguntar o que poderá surgir depois dela. A história recente da região ensina que a queda de um regime não garante a chegada da liberdade, apenas revela o tamanho do vazio que ele escondia. A memória da Primavera Árabe, de que se comemora mais de uma década, serve como aviso. Esse ciclo de revoltas começou com esperança, mas terminou, na maior parte dos casos, em caos, repressão ou catástrofe.

Na Síria, uma revolta legítima contra Bashar al-Assad degenerou numa guerra civil brutal, com centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados. Assad sobreviveu, é certo, mas já não governa e vive em luxo no exílio. Na Líbia, a queda de Kadhafi foi celebrada como fim de uma era, mas abriu caminho a um Estado falhado, dominado por milícias e por interesses estrangeiros. No Egito, a Irmandade Muçulmana foi afastada por um novo regime militar mais repressivo do que o anterior. Na Tunísia, onde tantos depositaram a última esperança, a democracia resvala para o autoritarismo populista, com um Presidente que governa por decreto. No Iémen, o que começou como protesto acabou como uma das maiores catástrofes humanitárias do século XXI.

O que une estes exemplos não é apenas o fracasso da transição, mas a ausência de alternativa credível, organizada e sustentável. O colapso das ditaduras árabes revelou não só o desejo de mudança, mas a total inexistência de estruturas capazes de a sustentar. Os liberais urbanos foram rapidamente marginalizados por atores com mais recursos, mais disciplina ou mais violência: islamitas radicais, chefes militares ou potências regionais. A Primavera Árabe foi menos uma revolução democrática do que uma implosão sincronizada de regimes sem sucessores.

Ora, no Irão, o risco é semelhante, mas mais profundo. Porque o regime, ao contrário dos seus vizinhos árabes, não sobrevive apenas por repressão. Sobrevive por convicção, por doutrina e por uma engenharia de medo e sacralização do poder que se entranhou na estrutura do Estado. Teerão não é Trípoli. E, por isso, a queda dos aiatolas não seria apenas uma crise nacional: seria um sismo geopolítico, religioso e civilizacional. Uma revolta popular no Irão — que já começou em ciclos intermitentes desde 2009 — pode incendiar o xiismo político global, fragmentar a sociedade iraniana ou gerar um novo tipo de conflito entre seculares e religiosos, ricos urbanos e pobres rurais, persas e minorias étnicas.

E não nos iludamos: ninguém está preparado para o “depois”. Nem os iranianos no exílio, profundamente divididos, nem os grupos étnicos separatistas no interior, nem as grandes potências. Washington teme repetir o erro de 2003, quando derrubou Saddam Hussein sem um plano para o Iraque. A justificação eram, então, armas de destruição maciça que nunca apareceram. A consequência foi um vácuo que deu origem ao Daesh, à guerra civil e ao enfraquecimento duradouro do Estado iraquiano. Hoje, as elites americanas estão mais cínicas, mas não necessariamente mais sábias.

A intervenção americana num conflito regional como este, sob o pretexto de contenção nuclear ou defesa de Israel, pode funcionar como catalisador de uma revolta interna, sobretudo se o regime responder com ainda mais repressão e escassez. E, no entanto, não há qualquer garantia de que uma queda rápida dos aiatolas traga liberdade, pluralismo ou estabilidade. Pode trazer o seu contrário: guerra civil, partição, ou mesmo a ascensão de um novo tipo de tirania.

Tal como em 2011, tudo começará com imagens de mulheres a tirar o véu, estudantes a marchar nas ruas, slogans nas redes sociais. Mas a política não se faz de símbolos, faz-se de estruturas. E o Irão, por mais que ferva, ainda não tem substituto para o regime que o domina.

A comunidade internacional enfrenta, assim, um dilema trágico. Manter o regime atual é aceitar o terrorismo por procuração, o programa nuclear clandestino e a repressão brutal da sociedade civil. Mas destruí-lo sem saber o que virá a seguir pode libertar forças ainda mais incontroláveis. A diplomacia europeia — ausente, cautelosa, ou apenas cúmplice — tem-se limitado a gerir o conflito, nunca a resolvê-lo. E a verdade, brutal e simples, é esta: talvez não haja solução boa para o problema iraniano. Apenas várias más, e uma delas será inevitavelmente escolhida.

Como disse um académico persa em exílio, “O Irão não precisa de uma Primavera. Precisa de uma Constituição”. Mas as Constituições não caem do céu. Precisam de tempo, instituições e consensos que ainda não existem. O perigo de repetir o erro de 2003 não está na intenção de mudar. Está na arrogância de achar que basta derrubar um regime para que nasça uma nação.

#Irão #Último #Regime

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