Todo o tempo é o da pressa. O único tempo em que vivi sem correr, foi quando voava para os braços do meu avô que aparecia no fundo da rua, as minhas pernas eram verdadeiras asas batendo em força. Também quando saltava entre árvores, dava chutos na bola e descobria, à esquadria, todos os potenciais que um espaço podia ter.
Há medida que fui ficando ocupada, comecei a entender as vezes em que os adultos viviam na pressa. Era um dia inteiro a viver onde não se estava ainda. Abriam as persianas à pressa, tomavam o pequeno-almoço à pressa. Decidiam o almoço devagar, mas com a urgência de quem tem de se despachar porque batendo a uma da tarde, era hora de almoçar. O almoço, esse, demorava. Mas dentro dele, sempre havia a pressa de saber o depois, o que faremos amanhã, as conversas preocupadas sobre o futuro e o fim cimentado com a pergunta de sempre — “Bom, e o que é que fazemos de jantar?”.
Conforme me foram dando ‘adultices’ mascaradas de responsabilidades, fui ganhando a noção do tempo. Talvez tenha sido a única desilusão de crescer. Descobrir que o tempo existe, e que para viver nele temos de ter pressa. Eu, que sempre gostei de contar as ramificações carnudas dos figos e tirar as pevides da melancia, uma a uma. Eu, que sempre quis demorar nas explicações das coisas, passar os dedos nos bonecos dos livros para lhes inventar relevos e seguir os carreiros, pensar os caminhos, demorar nas cavalitas do meu pai.
Tive, impreterivelmente, de começar a viver com pressa. Acordar rápido, degustar pouco, ter quatrocentas e cinco coisas para fazer, e fazer todas, sem ter tempo para fazer nenhuma. Exceto quando fugia para debaixo do tempo da minha avó. Porque a minha avó vive desde sempre numa casa que, por mais brechas que tenha, não vive em época nenhuma, se não no seu próprio andamento. Na verdade, olhando para os dias todos desde que existo, eu acho que a minha avó nunca teve pressa.
Sempre a vi afundar o pão no peito e deslizar a faca na mesma direção para cortar fatias finas. Ferver o café. Bater os bolos com as mãos. Acordar no tempo fresco para colher as coisas que só se colhem no tempo fresco. Sentar-se a meio do dia para descansar os olhos e empoleirar as pernas. Demorar-se na mesa para bisbilhotar memórias. Ter tempo para trabalhar e saber de nós. Tudo isto de bata ao xadrez vestida, como um fato de super-heroína.
Talvez porque, quando eu nasci, ela já tinha perdido o seu pai, alguns amigos, um filho e manuseado a doença do meu avô com canja de cogumelos no inverno e gaspacho no verão. Não quero crer que seja preciso perder meia vida para se viver sem pressa. Ter tanta vida dentro de um dia, e ainda assim perguntar, com voz doce, “então, minha filha, o que é que jantamos”, só e apenas na hora de jantar.
Eu sempre achei que a minha avó era a única pessoa do mundo a viver sem pressa. Mas no outro dia, aconteceu algo inesperado.
Desde que me lembro, que recordo tudo o que a minha avó faz ou diz, numa tentativa de eternizar cada pedacinho da sua existência. Um mini-dicionário com as suas expressões, as suas idas à horta, ela a apanhar figos de pita, a descontração com que habita uma mesa… Essas coisas todas que uma avó faz. Decidi partilhar no Instagram e depressa percebi que a minha avó não é a única que vive sem pressa. As netas que me chegavam tinham avós que viviam exatamente como a minha, e vestiam também a icónica bata de cavas e padrão xadrez. Que raio! Será um super-poder de avós?
Tudo isto levantou uma importante questão em mim: se a minha avó — e todas as avós — são as últimas do mundo a viver sem pressa, o que será de nós (que não queremos aprender) quando um dia não tivermos uma avó para onde fugir?
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