Falecido aos 90 anos, o arquitecto Nuno Portas merece bem uma evocação e uma apresentação, sintética embora, do muito que fez e de como contribuiu para a valorização da arquitectura e do urbanismo em Portugal.
No campo da teoria e da investigação, terá sem dúvida sido a figura mais pertinente, com toda a polémica que por vezes desencadeava, ao longo da segunda metade do século XX no nosso país. E sem deixar por isso de criar obras arquitectónicas ímpares, de contribuir para a História da arquitectura moderna e para a teoria-história da cidade portuguesa, bem como, noutros planos, de desenvolver políticas de intervenção inovadoras para a habitação (SAAL), de ser urbanista com acção internacional, de ser professor de arquitectura nas escolas de Lisboa e do Porto. Em suma, um homem e um
autor e criador multifacetado, plural, imparável.
Não pretendo aqui fazer uma biografia – embora vá incluir mutos dados e referências de vida e obra – mas sobretudo desejo evocar várias das experiências que pude ter com ele, como aluno, como colega ou colaborador.
De facto, constato-o, Nuno Portas foi para mim, ao longo do meu percurso de vida e trabalho, uma figura presente em tantas situações significativas, que posso confirmar a sua quase constante influência e presença “tutelar”.
Começo por evocar a sua intervenção no curso de Estudos Urbanos e Regionais no então ISCSPU – Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, funcionando no palácio Burnay, em 1975-76 (transmutado depois para o IST, com Costa Lobo) – logo a seguir, note-se, a ter desenvolvido políticas como Secretário de Estado, criando o SAAL.
Era uma fase e época de grande perturbação no ensino universitário, como de resto noutras áreas em Portugal. A ESBAL, onde eu cursava arquitectura, estava fechada (pelos alunos logo a seguir ao 25 de Abril, “expulsando” professores demasiado comprometidos com o Regime deposto, e em plena “febre” revolucionária) – a escola tinha “implodido” logo no dia 26, denunciando um estertor e uma decadência que levava anos, com crises sucessivas, mau ensino, intervenções policiais.
O novo curso (mestrado) de EUR era assim a alternativa única, aos alunos de arquitectura, para continuar a estudar, e desejava constituir uma formação inovadora, que procurava estruturar uma interacção polifacetada, e inter-universitária, nos campos do urbanismo, da arquitectura, do desenho urbano, da geografia urbana. E era uma criação de Nuno Portas (com o colega Luís Jorge Bruno Soares, se bem recordo), muito inspirada nos ventos dos “movimentos sociais urbanos” que proliferaram na América Latina nos anos de 1960-70: para desenvolver um ensino de alto nível, com sentido democratizador e algo revolucionário, apoiado nas disciplinas
afectas. Como que uma alternativa aos cursos de arquitectura e urbanismo convencionais de que Portas tentara debalde, nas décadas anteriores, implementar uma renovação, nas escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto.
E tínhamos uma amálgama de docentes, de contrastantes opções e
ideologias, que traduzia bem a confusão que então grassava no quadro universitário: recordo Nuno Portas, claro, em teoria e história, que então conheci como aluno e me fez de imediato sentir o contraste com as aulas que tinha tido na ESBAL – era brilhante, informado, levava livros e textos e apoio, era “ao vivo” a leitura culta da cidade e da arquitectura…Bruno Soares, espécie de coordenador, leccionava urbanismo, Raquel Soeiro de Brito “dava” geografia (num registo muito mais sereno e conservador), Mário Lages, vindo de França, cobria a sociologia e, inovação suprema, havia a disciplina de “lutas urbanas” (da tal ideia dos MSU latino-americanos) que o jovem sociólogo americano Charles Downs dava. Enfim, o curso, com alunos de arquitectura e também de paisagismo, de engenharia, etc, foi singrando (e aguardando a sua oficialização, que tardava), entre Verão quente e invernos frios, até à rotura final pela intervenção do novo governo socialista, “de direita” (que também terminaria com a experiência do SAAL), que em 1976 o suspendia e fazia depois transitar, mais expurgado de ímpetos esquerdistas, para a órbita do
IST e do professor engenheiro Costa Lobo.
Mas permanece inesquecível, em mim, o que o curso de Portas-Soares teve de mais criativo: a aventura das viagens de estudo – a Évora para ver a Reforma Agrária em pleno, entrevistando “controleiros” do PC em saborosos acampamentos noturnos no montado; e depois ao Minho, onde o ímpeto revolucionário de Charles Downs criou a situação de, em pleno reino das latadas e vinhedos, sairmos do autocarro e entrevistarmos a minhota aldeã, surpresa, aflita, inquirindo-a sobre a sua nova vida rural em plena revolução…
Foi neste contexto que tive o prazer de ser convidado por Portas para
elaborar com ele o texto que então preparava sobre a arquitectura portuguesa do século XX, que iria servir de introdução ao segundo volume da obra de Bruno Zevi, na tradução portuguesa (saída salvo erro em 1977 ou 79), a “História da Arquitetura Moderna”. Sem concretizar a minha colaboração, Portas elaborou então o texto fundador que foi o “Arquitectura Moderna em Portugal, uma leitura”.
Nesta sequência, e trabalhando eu já na direcção da nova fase da revista Arquitectura (Com José Lamas e Carlos Duarte), em 1980 pude convidar Nuno Portas para elaborar um outro brilhante ensaio, sobre as malhas regulares em retícula nas cidades euro-americanas, para a edição dupla dedicada às Avenidas Novas (ns 138 e 139).
Recordo – um pouco antes – igualmente a tentativa de instauração de um novo curso de arquitectura pensado por Portas para a reabertura da escola de arquitectura de Lisboa, em 1977-78 – mas que os novos ventos da política reactiva fez gorar, levando à alternativa concretização da iniciativa liderada por Augusto Brandão, para instaurar o Departamento de Arquitectura.
Foi ao longo dos anos da década de 1980 – talvez, após falharem as acções em Portugal, na procura de uma nova fase de vida – que Portas se internacionalizou por via de Espanha e de Barcelona, participando em planos e estudos urbanísticos, em colaboração com autores cimeiros do sector naquela cidade e em Madrid.
Recordo uma sua conferência em Barcelona, em 1988, no quadro de um congresso internacional de urbanismo ibero-americano, onde, num castelhano fluente, ele abordava os seus temas favoritos, no modo sempre polemizador e dialético, algo provocatório, de efeito espectacular, que sabia usar.
Passarei por cima de vários dos temas que todos o biógrafos tendem a abordar, sobre a vida e obra de Nuno Portas: a fase de primeira afirmação, como arquitecto e crítico de arquitectura, ao longo da década de 1960 – no trabalho de equipa na “sacristia” (o atelier com Nuno Teotónio Pereira) patente em obras como a casa de Vila Viçosa e a igreja do Sagrado Coração de Jesus (e aqui evoco o testemunho de Manuel Vicente sobre a proverbial irrequietude de Portas, ao referir “vi-o pela primeira vez sentado ao estirador a fazer, calma e demoradamente, com as próprias mãos, de “tê” e esquadro, o desenho do projecto de uma casa”!); o ex-aluno da ESBAL que
ficara conhecido, pela propensão para intervir e debater, como o “menino buzina” da ESBAL – e a obra de teorização na tese final do curso que teve de defender no Porto, pela recusa obtusa da escola de Lisboa; como crítico, os artigos em números da revista “Arquitectura” sobre as novas tendências da arquitectura internacional em Barcelona, e sobre a então jovem revelação que eram as obras primeiras por Siza Vieira; a fase sociologista e
de metodologia semiótica e estruturalista da arquitectura do anos 1960, e a sua participação na investigação técnico-teórica do LNEC, onde formou equipa – resultando daí o primeiro livros publicado, em 1964; as referências sistematizadas à extensa obra em livro, com a reedição mais recente da obra conjunta aquando da exposição a ele dedicada em 2012 (por Nuno Grande); e etc, seria infindável coleccionar e enumerar aqui as suas sucessivas fases de trabalho e de actuação, em Espanha, na Escola do Porto, em Aveiro – com as merecidas premiações e reconhecimentos.
Prefiro continuar no registo mais simples do testemunho pessoal, resultante das experiências que, por via dele e/ou com ele, pude desenvolver, década a década:
– em 1997, quando a Universidade Autónoma de Lisboa me convidou para organizar um novo curso privado de arquitectura, foi ele que me indicou como a pessoa adequada à iniciativa – colocando-se de lado (por preferir estar exclusivamente do lado das universidades públicas), mas tendo a generosidade de indicar quem entendia certo; (noto que este curso de arquitectura da UAL, que é actualmente dos mais qualificados e premiados de Lisboa, muito lhe deve na proposta que pude estrutuar);
– em 1998, aquando dos 25 anos de Expresso, em que me convidaram para fazer uma publicação das 25 obras construídas mais marcantes, em Portugal e no Mundo, desde 1973, foi a sua singela mas pertinente e desafiadora introdução crítica à dita publicação que soube, com sabedoria e cultura, posicionar e relativizar as questões das tão díspares linguagens arquitectónicas internacionais da minha escola na época;
– cerca de 2004, aquando das reuniões dos jurís da FCT (Fundação para a Ciência e para a Tecnologia), em que Portas era presidente do jurí onde eu me inseria, recordo bem a sua capacidade de mediar conflitos e posições contraditórias, num trabalho difícil e múltiplo, chamando a atenção para a necessidade de “se ser sério”, e objectivo qb, nas escolhas e nas opções que tínhamos de saber fazer relativas aos trabalhos dos muitos concorrentes a apoios de teses (o seu sentido moral ou de justiça vinha então ao de cima, quiçá);
– em 2006-7, aquando do júri reunido em Angra do Heroísmo, em que
trabalhávamos em equipa, para a escolha do projecto vencedor de uma importante obra pública insular, (ou o Centro de Artes “Arquipélago” da Ribeira Grande ou a nova Biblioteca e Arquivo angrense, Nuno Portas pôde exercer a sua competente capacidade crítica, debatendo conosco de um modo eficaz e útil a escolha final, tendo em conta a importância de legar aos Açores uma obra arquitectónica que exemplarmente assumisse a modernidade no contexto urbano!
– pela mesma época, num colóquio sobre arquitectura em Vila Viçosa (terra de ascendentes seus familiares) em que participávamos, presenciei o empenho que Nuno Portas colocava na defesa da mais correcta evolução urbana e arquitectónica, e na melhor gestão municipal que entendia adequada, para o futuro desta localidade a que o ligavam tantos laços afectivos.
– uma derradeira evocação, mas esta com muita pena – durante anos a fio, creio que por volta de 2015-18, pugnei para que Nuno Portas recebesse da (minha) Faculdade de Arquitectura de Lisboa – que fora também a sua escola durante anos, como aluno e como professor – o merecidíssimo título de Doutor Honoris Causa. Infelizmente, por motivos que nunca entendi ou aceitei, tal não foi possível!
Eu poderia continuar a rememorar, a evocar e descrever as intervenções e acções de Nuno Portas que constantemente presenciei ou onde tive o gosto de participar. Mas seria de novo um rol infindável…que fique assim aqui o meu testemunho, incompleto mas sentido, de Nuno Portas como a personalidade ímpar, excepcional, da nossa arquitectura dos séculos XX-XXI, com quem tanto aprendi e que tanto admirei.
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