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“Hora do Desaparecimento”: a confirmação do talento autoral de Zach Cregger… para o bem e para o mal

A HISTÓRIA: Quando todas as crianças de uma mesma turma desaparecem misteriosamente na mesma noite, à mesma hora – exceto uma -, a comunidade começa a questionar quem ou o que estará por trás deste desaparecimento.

“Hora do Desaparecimento”: nos cinemas desde 7 de agosto.


Crítica: Manuel São Bento
(Aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).

Há cineastas que, logo à primeira longa-metragem, deixam uma marca difícil de apagar. Com Zach Cregger, foi à segunda que conseguiu exatamente isso, através de “Barbarian”, uma das surpresas mais refrescantes e imprevisíveis do cinema de terror recente. Cregger mostrou que estava disposto a arriscar criativamente, mesmo que isso significasse afastar parte do público e, agora, com “Hora do Desaparecimento”, confirma que a sua assinatura cinematográfica está bem viva: um cineasta que não procura consenso, mas sim concretizar a sua visão até ao último plano… mesmo que nem sempre essa visão conclua da forma mais satisfatória.

“Hora do Desaparecimento” é escrito e realizado pelo próprio e conta com um elenco de peso liderado por Josh Brolin (“Duna – Parte Dois”) e Julia Garner (“O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos”). Uma noite, precisamente às 2h17, todas as crianças de uma turma deixam os respetivos quartos, abrem as portas de casa e desaparecem misteriosamente na escuridão. Todas, exceto uma. A tragédia leva os habitantes da pequena cidade a questionar quem ou o que estará por detrás do desaparecimento. A narrativa é contada através de uma estrutura por capítulos, cada um focado numa personagem específica. Ao contrário de outras obras que utilizam várias perspetivas para explorar versões alternativas de um mesmo acontecimento, aqui todas são factuais e complementares, avançando a história no tempo e mostrando como cada interveniente experiencia e influencia os eventos. É uma abordagem que, quando bem executada, oferece ritmo, variedade e dimensão, mantendo a coerência narrativa.

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Hora do Desaparecimento

O que se destaca desde cedo é a força do elenco. Brolin entrega uma interpretação altamente cativante, equilibrando dureza com momentos de vulnerabilidade emocional que dão espessura ao seu papel. Garner, por sua vez, carrega uma carga dramática sólida, trazendo humanidade à sua personagem, o que ajuda a elevar várias das sequências mais tensas. Ambos carregam “Hora do Desaparecimento” aos ombros, apesar de todo o elenco brilhar quando chamado a ocupar o centro do ecrã — Benedict Wong (“Doutor Estranho”), apesar de inicialmente ter um registo mais discreto, ganha relevância a partir de um desenvolvimento específico que torna a sua personagem bem mais imprevisível, resultando numa das melhores cenas da obra.

A nível técnico, Cregger volta a mostrar um domínio impressionante na encenação e até na fisicalidade do seu cinema. As sequências de maior terror são de uma intensidade notável, incluindo até momentos de ação protagonizados por atores muito jovens – um feito que merece especial aplauso, não apenas pela execução, mas pela coragem e disciplina exigidas – e introduzindo uma postura peculiarmente assustadora de corrida que tem tudo para se tornar viral ao longo do ano.

É exatamente nos elementos de terror que “Hora do Desaparecimento” não poupa os espectadores. Existem cenas chocantes e sangrentas, com doses generosas de gore, sustos eficazes e um trabalho de maquilhagem perturbador que contribui para uma atmosfera inquietante. Cregger não tem receio de explorar o grotesco, mas fá-lo com um sentido visual controlado, o que evita que a obra descambe para o gratuito. A banda sonora atmosférica é excelente na imersão dos vários pontos de vista da história, mas a sua utilização é demasiado contida. Um uso mais presente teria amplificado vários momentos-chave.

Dito isto, o debate mais intenso sobre “Hora do Desaparecimento” cairá sobre a sua camada temática e a conclusão certamente divisiva da obra. O argumento de Cregger funciona como um mosaico sobre a forma como diferentes indivíduos e comunidades lidam com o trauma e a violência. A estrutura em capítulos não serve para questionar a verdade dos eventos, mas para mostrar a sua progressão através de diferentes lentes humanas, permitindo observar como o luto e o trauma coletivo se manifestam de maneiras distintas. Cada segmento revela um novo impacto da violência – desde a dor silenciosa até à raiva contida – criando um retrato amplo e multifacetado de perda e resistência.

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Hora do Desaparecimento

O cenário suburbano de “Hora do Desaparecimento” desempenha um papel essencial no subtexto geral. Cregger explora o “medo suburbano” e a perceção de decadência social que se instala em comunidades aparentemente seguras. Ruas vazias, fachadas perfeitas e rotinas banais tornam-se pano de fundo para uma tensão crescente, simbolizando um mundo onde a superfície ordeira oculta uma profunda instabilidade emocional e moral. É uma abordagem que ecoa temas de alienação, desconfiança e a fragilidade do sistema social, sobretudo quando este é abalado por eventos de violência repentina.

Outro ponto relevante é a ambiguidade que Cregger mantém mesmo nos momentos de maior choque. Embora a violência seja explícita, a motivação central permanece vaga, o que reforça a sensação de ameaça difusa e intangível. Essa opção dá espaço para leituras alegóricas e sociopolíticas: “Hora do Desaparecimento” pode ser interpretado como um comentário sobre a banalização da violência, a manipulação de narrativas mediáticas ou até a incapacidade de um sistema comunitário em oferecer respostas eficazes perante a tragédia. A ausência de uma resolução clara pode frustrar, mas também obriga os espectadores a refletirem sobre as próprias expetativas de encerramento num mundo onde muitas feridas permanecem abertas.

Narrativamente, o maior trunfo de “Hora do Desaparecimento” é a coerência entre forma e conteúdo. A decisão de mostrar a mesma história através de diferentes perspetivas não fragmenta o enredo, mas enriquece-o, acrescentando detalhes e revelando ligações que só fazem sentido com o progresso dos capítulos. É um método que mantém o interesse e o mistério, mesmo que nem todos os segmentos possuam o mesmo impacto ou imprevisibilidade. Tal como “Barbarian”, é difícil ser mais claro ou profundo sem recorrer a spoilers, pelo que não consigo mencionar exemplos específicos ou até personagens em concreto sem dar a entender do que o filme se trata – é, sem dúvidas, daquelas obras que se devem assistir sem qualquer conhecimento prévio.

No entanto, é precisamente por essa consistência durante grande parte da obra que o terceiro ato se torna tão desconcertante. A transição para um registo de comédia explícita é abrupta e desarmante, quebrando a tensão e a coesão tonal que Cregger construiu ao longo de quase duas horas. O que até então era um filme de terror bastante envolvente transforma-se num exercício de humor que, por si só, poderia funcionar noutro contexto, mas aqui colide com as expetativas e com a densidade temática previamente estabelecida. O problema não é apenas a mudança de tom, mas também o facto de o clímax chegar de forma igualmente abrupta, sem motivar o antagonista central nem fechar devidamente as ideias que a obra vinha a estudar.

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Hora do Desaparecimento

Este desfecho acaba por gerar uma sensação de frustração dupla: por um lado, o investimento emocional e intelectual que os espetadores fizeram ao longo da narrativa não encontra o retorno esperado; por outro, a rutura tonal quebra o elo de confiança criado entre realizador e audiência. A mudança para o humor, ao invés de funcionar como catarse ou comentário irónico sobre os acontecimentos, parece diluir o peso das temáticas centrais, reduzindo-as a pano de fundo para um momento de desconstrução que, embora ousado, carece de propósito dramático claro. É como se “Hora do Desaparecimento”, no último minuto, decidisse virar as costas ao caminho que traçou com tanta segurança, deixando o público não apenas surpreendido, mas com a amarga sensação de que presenciou um grande potencial desperdiçado.

Ainda assim, “Hora do Desaparecimento” cumpre com o que promete. A visão autoral de Cregger mantém-se intacta: o cineasta filma e escreve como se tivesse carta branca criativa, apostando numa abordagem arriscada que não se preocupa em agradar a todos. Essa autenticidade é, por si só, louvável num panorama em que muitos projetos de estúdio são moldados para maximizar o apelo comercial. Mesmo com uma conclusão que fica aquém, o conjunto permanece suficientemente forte para justificar a experiência e, para muitos, a ousadia criativa compensará os problemas referidos.

Conclusão

“Hora do Desaparecimento” confirma Zach Cregger como um cineasta de visão distinta, capaz de unir um domínio técnico impressionante a uma ambição narrativa pouco habitual. As prestações de Josh Brolin e Julia Garner são pilares fundamentais que sustentam a intensidade do filme, enquanto as cenas tensas e sangrentas contribuem para uma experiência verdadeiramente visceral. Apesar do desfecho abrupto e algo desapontante que enfraquece parte do impacto acumulado, a forma como temas como o trauma coletivo e a decadência suburbana são explorados revela uma confiança autoral que merece reconhecimento. Mesmo com as suas imperfeições, a obra provoca, envolve e deixa imagens e sensações marcantes, reforçando Cregger como uma das vozes mais intrigantes do cinema de terror contemporâneo.

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