Nos últimos tempos, dei por mim a pensar: sei mesmo descansar? Ou apenas paro entre tarefas para poder voltar a produzir?
Vivemos num tempo em que parar parece ser sinónimo de falhar. Em que não fazer nada é quase uma ofensa. A produtividade transformou-se numa espécie de identidade: quanto mais fazemos, mais nos sentimos válidos — mais sentimos que existimos. E, no meio dessa lógica, acabamos por viver num ciclo constante de movimento, mas raramente de presença.
Estamos viciados em fazer coisas. Acordamos com listas mentais que nem sempre foram escritas, mas que nos gritam por dentro. Consumimos dezenas — ou centenas — de conteúdos por dia: uns educativos, outros inspiradores, outros só porque sim. E entre uma notificação e outra, também temos de mostrar que estamos activos, que estamos a criar, que estamos a trabalhar, a viver, a produzir. Parece que há uma urgência invisível a correr atrás de nós, e se pararmos… perdemos o lugar.
É quase assustador perceber o quanto ligamos a nossa existência ao que conseguimos fazer. E nem precisa ser algo grandioso. É o simples “tenho que ser útil”. “Tenho que aproveitar o tempo.” “Tenho que fazer valer o meu dia.”
Até o lazer foi sequestrado por esta mentalidade. Ler? Tem que ser um livro que ajude na carreira. Ver uma série? Só se me ensinar alguma coisa. Ir ao ginásio? Porque produtividade também é cuidar do corpo. Já não sabemos fazer nada só porque sim. Só porque nos apetece. Só porque nos faz bem.
A verdade é que estamos a transformar todos os momentos em oportunidades de desempenho. E isso cansa. Mas o pior é que esse cansaço nem sempre é visível. É um desgaste interno, emocional, silencioso — mas profundo. Sentimo-nos culpados quando não temos “nada para mostrar” no fim do dia. Como se o descanso fosse uma falha no sistema. Como se a pausa fosse um defeito, e não uma necessidade.
Antigamente, falava-se de tempos livres. Perguntava-se nas escolas: “O que fazes nos teus tempos livres?” — e a resposta podia ser tão simples como “brincar”, “ver televisão”, “estar com a família”. Havia uma leveza natural nessa ideia. Mas hoje, até isso parece ter mudado. Ter um hobby tornou-se uma exigência social, quase curricular.
Se alguém diz, por exemplo, que não tem hobbies, a reacção é quase de alarme: “Como assim? Não fazes nada nos teus tempos livres?” Como se o lazer precisasse de ser validado por uma produtividade disfarçada.
Até nas entrevistas de emprego o hobby entrou como critério: é suposto que a pessoa tenha interesses paralelos, que invista em si mesma. E isso parece inofensivo, até inspirador. Mas a verdade é que transformamos os nossos momentos de descanso em mais um campo de performance. Já não basta trabalhar bem — é preciso também descansar “de forma útil”.
Essa pressão silenciosa empurra-nos a procurar algo que, muitas vezes, nem é verdadeiramente nosso. Eu própria dei por mim a procurar um hobby — não por paixão, mas por uma espécie de obrigação invisível. Porque parar… parece falhar. Porque não ter “nada para mostrar” ao final do dia parece vazio.
Claro que os hobbies podem ser maravilhosos. Mas o problema está quando até o descanso é colonizado pela produtividade. Quando o lazer deixa de ser uma escolha e passa a ser mais um item na lista de coisas a fazer bem. E, com isso, afastamo-nos cada vez mais da possibilidade de apenas descansar. De simplesmente estar. De sermos, mesmo quando não estamos a produzir.
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