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A epidemia zombie do fentanilo: o choque de uma viagem à América do Norte

O mundo das drogas de abuso está em transformação, antecipando-se consequências clínicas e forenses no mínimo preocupantes. Depois de vários anos a investigar drogas de abuso (corretamente designadas como substâncias psicoativas), devo confessar que não antevia grandes surpresas em matéria de efeitos tóxicos com as novas substâncias que praticamente todos os dias surgem. Estava completamente errado.

Primeiro foi o krokodil, uma droga sintética caseira – e uma das invenções mais trágicas da história das drogas de abuso. Conhecida pelos efeitos catastróficos porque o seu uso intravenoso causa gangrena e úlceras, expondo os ossos e os órgãos internos. A natureza corrosiva do krokodil é atribuída aos ingredientes usados na sua preparação e às impurezas deixadas no produto final. Felizmente, nunca houve muitos consumidores desta forma de “heroína feita em casa”.

Desde o início deste ano, tenho-me dedicado ao estudo do fentanilo. A espoleta foi uma visita à América do Norte, para um congresso científico forense, no Canadá. Fiquei extremamente mal impressionado com o número de consumidores nas ruas. Sem-abrigo, fumavam e injetavam-se, exibindo ainda agulhas “penduradas” nos braços e abscessos nos membros inferiores em plena luz do dia, em ruas movimentadas. Em várias outras partes do mundo, o fornecimento de heroína tem sido substituído pelo fentanilo, um opioide sintético que se está a tornar bem mais lucrativo para os carteis. Essa onda foi agravada pela pandemia de COVID-19, com o número de overdoses e mortes a aumentarem drasticamente. Estima-se que o fentanilo seja de 50 a 100 vezes mais potente que a morfina e cerca de 50 vezes mais potente que a heroína.

Entre os efeitos tóxicos que mais me chocaram constatar, foi a coluna vertebral curvada em flexão anterior do tronco a quase 90 graus e o risco de amputações devido aos abscessos, úlceras e gangrena. Ao caminhar pelas ruas, ao lado de lojas de marcas caras, era fácil ver consumidores em jeito de procissão com as costas contorcidas, as calças descaídas, realizando movimentos repetidos e apoiados em andarilhos, carrinhos de supermercados ou cadeiras de rodas, provavelmente devido às dores de que padeciam. Pareceram-me zombies.

Após ter estudado as toxicodependências e os seus efeitos tóxicos por mais de duas décadas, incluindo a preparação de um atlas de lesões, o que vi nas ruas foi uma novidade perturbante. Sempre ouvi falar de zombies através dos filmes, mas nunca os tinha visto. Os meus estudos parecem apontar várias causas para esta curvatura, nomeadamente a contaminação microbiológica destas drogas ou das seringas e agulhas partilhadas, mas também da contaminação do fentanilo com um anestésico para cavalos, a xilazina. Não se podia imaginar combinação mais terrifica.

Esta crise de opioides na América é já uma epidemia, que foi até citada por Donald Trump ao referir a intenção de impor tarifas ao Canadá. Nos Estados Unidos, só em 2023, cerca de 107.542 pessoas (o equivalente a 1% da população portuguesa) morreram por overdose de drogas – quase 300 pessoas por dia. Por cá, os relatórios das entidades oficiais confirmam que as mortes pelo consumo de drogas estão a aumentar e já não é só entre os mais desfavorecidos e vulneráveis. O principal responsável por essas mortes são os opioides, onde se inclui o fentanilo.

Precisamos de agir rapidamente para evitar que algo semelhante à realidade norte-americana chegue com a mesma força à nossa sociedade. Neste momento, já estamos a tentar não nos afundar num pântano. Se no passado lutávamos contra traficantes que exploravam agricultores a produzirem as drogas clássicas (extraídas da cannabis e do ópio, e a cocaína), hoje o mundo está a ficar muito diferente em matéria de drogas de abuso. Nós, especialistas, lutamos contra fabricantes altamente qualificados em síntese química e em biologia, que inundam as ruas de novas substâncias. Na medicina e na ciência forense de rotina demoraremos meses, até anos, para saber que uma nova substância está a ser traficada nas ruas. E elas continuam diariamente a chegar e a fazer as suas vítimas.

São necessárias – e já! – políticas muito dirigidas e modernas, que respondam à rapidez e capacidade dos laboratórios de drogas e de quem as traficam.

Precisamos de investir seriamente em técnicos capazes de analisar as substâncias desconhecidas. Também precisamos de investir mais na formação em terapêutica da dor, pois tivemos, em 2023, aumentos na prescrição de fentanilo, enquanto analgésico. Este é já o quarto opioide mais dispensado nas farmácias.

Uma atitude meramente reativa não dá a resposta adequada a esta epidemia zombie.

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