Vivemos um período de grandes transições, uma “Grande Transformação” à maneira de Polanyi (Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944). Falamos de digitalização, ciência dos dados, protocolo algorítmico, internet das coisas (IOT), realidade aumentada e virtual (RAV), computação em nuvem, inteligência artificial (IA), automação, robótica e máquinas inteligentes, meta verso, computação quântica. Falamos de muitos códigos informáticos e modelos de linguagem, muitos ambientes simulados e dissimulados, muita realidade paralela e inversão da realidade, muitas personagens alternativas e heterónimos avatares, um teatro de operações especiais e uma guerra híbrida permanente. Eis, em plena operação, a novilíngua tecno-digital e o novo ambiente de racionalização comunicativa. Uma sociedade tecno-digital de onde emerge uma espécie de totalitarismo imanente, enquanto, ao mesmo tempo, a imanência da sociedade democrática se abeira de limiares críticos.
Livros e jornais, radio e televisão, smartphones e ecrãs, três tipos de esfera pública, três racionalidades comunicativas. Com a novilíngua tecno-digital passamos da racionalidade comunicativa para a racionalização comunicativa. Em vez da conexão argumentativa e o conhecimento, temos, agora, a cenografia, a coreografia e a representação, o espetáculo e o entretenimento, o prazer imediato e a ilusão permanente. A racionalidade discursiva dá lugar à comunicação afetiva, não são os argumentos, mas as emoções que contam. As informações falsas rendem muito mais do que os factos. O visual prevalece sobre o textual, o discurso argumentativo e a verdade não são virais, a democracia é preguiçosa, morosa, cúmplice e corrupta. A rede centrífuga dos media digitais provoca uma alteração radical na esfera pública, uma espécie de vertigem informativa, no limbo de uma infopandemia nas mãos de esferas privadas, de suas bolhas e fidelidades tribais.
O smartphone é, doravante, um registo psicométrico que alimentamos em permanência. Os familiares, vizinhos e amigos, contam menos, a psicometria permite predizer um comportamento muito melhor do que um amigo ou familiar. E da psicometria para a biopolítica e a psicopolítica vai um pequeno passo que o marketing estratégico usa em muitos domínios de forma abundante para gerar os diversos servilismos voluntários que constituem a sociedade tecno-digital. Doravante, os códigos e os dados prevalecem sobre a comunicação e a discussão, com menos ruído e desperdício pelo meio.
Se observarmos o que se passa, hoje, na sociedade americana, os ataques dos agentes tecno-plutocráticos contra os checks and balances da democracia política liberal – os media e os jornalistas, os poderes judiciais, as academias e as universidades, os organismos de supervisão e regulação, o universo da opinião publicada – pretendem demonstrar que a racionalização tecno-digital é superior à racionalidade humana comunicativa que, como dissemos, tem muito ruído e desperdício pelo meio. A racionalização digital e algorítmica seria, portanto, uma espécie de vontade geral, um equivalente funcional da vontade geral da democracia político-partidária. Os algoritmos chegam lá sozinhos, a comunicação só atrapalha.
A mensagem parece clara, sobretudo para os mais distraídos. Está na hora de abandonar a individualidade, doravante, a nossa racionalidade é definida pelo tecido social que nos envolve, ou seja, são as leis da física social que determinam o nosso comportamento. Tal como as abelhas ou as formigas, observemos os nossos semelhantes e imitemos o seu comportamento. No interior da sociedade tecno-digital não haverá órgãos de deliberação, mas sim unidades funcionais de planificação, controlo e condicionamento que substituem o governo e a política. O panótico da sociedade tecno-digital espera por nós. Ou, dito de outro modo, se não apostarmos convictamente na utopia política democrática, então apanharemos pela frente com a distopia política totalitária.
A terminar, e apesar da nossa deceção com a política atual, recordemos sempre de que não poderemos prescindir do compromisso e da negociação políticas, pois as desigualdades sistémicas da sociedade tecno-digital estão aí e agravarão as relações humanas e sociais como nunca as conhecemos. E já nem serve o facto de confessarmos que perdemos a fé na própria verdade. Doravante, a novilíngua e a racionalização comunicativa da sociedade tecno-digital fazem-nos mergulhar num mundo liquefeito onde só há ambivalência, contingência, instabilidade. Espero bem que ninguém se lembre de criar um ministério da verdade e difundir teorias da conspiração para controlar os cidadãos. Estamos, digamos, na caverna digital, confinados, a luz da verdade é muito trémula porque soprada pela ventania digital. O falar verdade é um ato genuinamente político que se distingue pela sua duração. Ou como alguém dirá, a luta continua.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
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