Há mais de 40 anos que trabalho na área da Educação Especial. Neste percurso, tenho assistido a uma tendência persistente e preocupante: o abandono progressivo dos alunos com necessidades educativas especiais — aqueles com diferenças significativas de aprendizagem e/ou desafios socioemocionais — por parte do sistema educativo português.
O Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, ilustra de forma paradigmática essa realidade. Sob a capa de uma retórica inclusiva, o documento promove, na prática, a negligência. Ao defender uma “escola para todos” sem garantir os apoios diferenciados de que muitos necessitam, o Ministério da Educação acabou por comprometer os percursos escolares destes alunos. O resultado? Uma integração ilusória, que mascara o insucesso, perpetua a exclusão e aprofunda as desigualdades.
Permitam-me uma metáfora: imaginemos que a CP deteta acidentes frequentes na linha Lisboa-Porto. Após investigação, conclui-se que a última carruagem é sempre a mais danificada. A solução adotada? Retirá-la. Mas o verdadeiro problema — estrutural, no sistema ferroviário — permanece. Esta imagem traduz bem a forma como o Ministério da Educação tem lidado com a educação de crianças e adolescentes com diferenças significativas de aprendizagem: culpabilizando, assim parece, essas mesmas crianças e adolescentes pelas falhas de um sistema que não está preparado para os acolher.
O atual modelo, plasmado no Decreto-Lei n.º 54/2018, levanta sérias dúvidas quanto à sua eficácia. Continuamos a assistir a uma má compreensão do conceito de inclusão, a uma formação deficitária dos professores (do ensino regular e da educação especial), à ausência de recursos humanos especializados e a uma escassa articulação com as famílias. Pior ainda, parece persistir uma cultura de imobilismo, sustentada por dirigentes que há décadas ocupam cargos-chave sem trazerem inovação, experiência prática ou visão estratégica.
É urgente uma renovação. Precisamos, no Ministério da Educação, de técnicos verdadeiramente especializados, com formação sólida e experiência real em contextos escolares. O mesmo se aplica aos consultores e colaboradores que, ao longo dos anos, em nome do mesmo ministério, têm sustentado políticas e práticas prejudiciais aos interesses e ao sucesso dos alunos com diferenças significativas de aprendizagem.
Esta mudança não resolverá todos os problemas, mas pode ser o início de um caminho mais justo, mais humano e, sobretudo, mais eficaz.
A inclusão não se faz com discursos, mas com políticas estruturadas, investimento consistente e vontade política real. Até lá, os alunos com diferenças significativas de aprendizagem continuarão a ser tratados como a “última carruagem”: descartáveis, esquecidos, culpados por um falhanço que não é — nem nunca foi — deles.
Resta a esperança de que o atual ministro da Educação, reconduzido no novo governo, enfrente esta questão de frente. Não como mais um ponto na agenda, mas como um imperativo ético e social.
O autor escreve segundo o acordo ortográfico de 1990
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