Nos últimos anos, tem sido noticiado o surgimento do fenómeno booktok. A sua influência na juventude é vista com bons olhos. Segundo certas estatísticas, os jovens portugueses compram cada vez mais livros – o que é muito salutar. Contudo, a média do exame nacional de Português desceu para onze valores – o que é menos salutar.
No corpo dessas notícias é habitual encontrar-se uma entrevista a algum booktoker. Quem a ler, descobre uma tendência, entre os jovens, que pode gerar alguma inquietação. Refiro-me ao novo entendimento da palavra “leitura”.
É comum os booktokers fazerem afirmações como “devo ler aí uns cem livros por ano” ou “leio à volta de dez livros por mês”. Porém, quando lhes é pedida alguma reflexão sobre as leituras que fazem, limitam-se a resumir vagamente os seus livros preferidos ou a exprimir gostos pessoais – sem grande meditação sobre o que leram.
Vendo este tipo de entrevistas, dou por mim a perguntar-me: o que entenderão pela palavra “ler”? E, nesse momento, costuma vir-me à memória um pequeno conto do escritor argentino Jorge Luís Borges, intitulado A Escrita do Deus.
Esse conto narra o encarceramento de um sacerdote asteca – prisioneiro de colonizadores espanhóis – numa redoma de pedra, sem luz, onde passa sozinho os seus dias. De acordo com a religião do sacerdote, certa profecia anunciava que um deus inscrevera, algures neste mundo, uma sentença mágica – que nos salvaria do fim dos tempos. A sentença não se encontrava forçosamente nas palavras de um texto, mas poderia estar inscrita na pele de um animal, nas folhas de um vegetal – ou em qualquer ente deste mundo. O sacerdote ocupava o seu tempo tentando recordar-se de tudo o que vira no seu passado, na esperança de encontrar essa sentença divina – suspeitando já a ter visto, sem nunca se ter apercebido dela.
Não contarei o resto do conto – pode alguém ainda não o ter lido – mas a narrativa parece-me assaz eloquente. Sempre vi, nesta pequena história, uma metáfora do acto de ler.
O sacerdote encarcerado tenta recordar-se de tudo aquilo que viu na sua vida – para encontrar, nas suas memórias, a sentença mágica do deus. Também os leitores, após fecharem um livro, fazem uma reelaboração mental do texto que leram – tentando encontrar significados na sua leitura. Ler é uma reflexão posterior. De certa forma, a verdadeira leitura começa após o livro ter sido fechado.
Mas, ouvindo as entrevistas dos booktokers, dá a sensação de que a leitura é entendida por alguns destes jovens como uma espécie de maratona – uma corrida para ver quem passa os olhos mais depressa por um conjunto de palavras, até alcançar o ponto final. Ora, ler não é isto.
Jorge Luís Borges – que foi um leitor e escritor precoce – teve o infortúnio de começar a perder a visão aos trinta anos e de ficar praticamente cego aos cinquenta e cinco. Tal como o sacerdote encarcerado na redoma escura, também Borges (após perder a visão) passou o resto da sua vida a recordar-se das coisas que viu, dos livros que leu – e a elaborar os seus contos e poemas a partir dessa matéria-prima. O facto de já não poder ver as palavras escritas nas páginas dos livros não o impediu de continuar a ler, até ao fim da sua vida, todos os textos que lera no seu passado. Em entrevistas filmadas, vemos Borges citar de memória inúmeros poemas, contos, peças de teatro – inserindo essas citações, com justeza, no contexto das conversas. Fazia-o de forma genuína e não por exibicionismo.
Quer isto dizer: na sua infância e juventude, quando ainda podia ver, Borges passou boa parte do seu tempo a ler – ou seja, a reflectir sobre os livros que lia, a apreciá-los, a memorizá-los, a interiorizá-los. Não se limitou a correr os olhos por eles, para passar ao próximo. Não – Borges, leu-os. Mais tarde, quando perdeu a visão, relia em memória as visões descritas nos livros da sua juventude – e, apoiando-se nelas, sonhou as suas próprias visões.
E isto é um verdadeiro leitor!
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