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Bufos digitais: a inveja e o justicialismo como heranças de outro regime | Opinião

Em tempos, bastava um sussurro à PIDE. Hoje, basta um tweet ou email anónimo. Mudou o regime, mas será que mudaram os nossos reflexos? Continuamos prontos a denunciar — ontem ao guarda ou agente mais próximo, hoje ao Ministério Público.

A cultura de delação do Estado Novo não foi apenas um instrumento de repressão; foi também um teatro de moralidade enviesada, onde a inveja e o ressentimento se disfarçavam de zelo patriótico. Muitos denunciavam por convicção, mas outros por vingança, ciúme ou puro oportunismo. Como explicou José Gil, esta herança psíquica inscreveu-se mal na democracia. O medo de existir cedeu lugar à suspeita de quem ousa existir de mais.

Hoje, sem censura oficial, assiste-se a um novo justicialismo. Alimentado por redes sociais, desconfiança difusa e uma sucessão de investigações mediáticas, instala-se a suspeita automática. A simples associação a cargos políticos ou económicos basta para muitos lançarem acusações sem filtros. Quando tudo é suspeito, nada é discernido. E o resultado é o mesmo de outrora: autocensura, cinismo e um país em modo de retranca.

Em sociedades com elevada desigualdade e fraca literacia cívica, tende a emergir um padrão recorrente: quem se sente injustiçado ou ameaçado recorre à denúncia para “nivelar por baixo”, congelando julgamentos sem escutar. Quando o sucesso de outrem é visto como ameaça, o apelo à punição pública torna-se uma catarse. E, como a reputação se fragiliza à velocidade de um scroll, qualquer deslize — real ou imaginado — pode ser combustível suficiente para acender a fogueira digital. O julgamento colectivo raramente investiga: consome, condena e segue para o próximo caso.

Mas, se a crítica é vital em democracia, a sua caricatura vigilante não é. A denúncia é uma ferramenta cívica nobre — quando usada com critério, prova e responsabilidade. Já o linchamento reputacional, em modo de turba digital, presta-se mais à vingança do que à justiça. O direito à indignação perde força quando se torna ruído permanente. E uma sociedade que grita sempre já não sabe ouvir quando é realmente preciso escutar. No fim, sobram ruínas morais e uma cidadania temerosa, paralisada entre o medo de errar e a ânsia de apontar o erro alheio.

A herança da delação não desaparece com decretos. Dissolve-se com educação para o pensamento crítico, transparência nas instituições, prestação de contas visível e justiça que funcione — rápida, imparcial e eficaz. O problema não é que hoje se denuncie o que está mal. É que se denuncia tudo, por princípio, sem distinguir o que é crime do que é só diferença. E isso é continuar como se nada tivesse acontecido antes e depois do 25 de Abril.

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