Os e-mails começaram a chegar na tarde da última quarta-feira. “Este contrato será rescindido por conveniência e interesse do Governo dos EUA”, lia-se na breve nota que anunciava o fim de cada um de 5800 projectos até então financiados pela USAID, a agência norte-americana de ajuda externa e, até há semanas, a maior prestadora mundial de assistência humanitária e de apoio ao desenvolvimento.
O fim era esperado, mas não de forma tão drástica e célere. Na primeira semana do regresso de Donald Trump à Casa Branca, os Estados Unidos tinham anunciado uma suspensão por 90 dias de praticamente todos os seus programas de ajuda externa para, oficialmente, se proceder à sua revisão geral e identificar situações de alegada fraude ou desperdício. Prometia-se então que não seriam afectados programas vitais de cuidados de saúde e de assistência alimentar. “Não queremos ver ninguém morrer”, reiterava Marco Rubio, chefe da diplomacia norte-americana, no início de Fevereiro.
Mas a revisão terminou abruptamente na quarta-feira, a meio de uma batalha judicial entretanto movida por empresas e organizações parceiras da USAID, que exigem agora o pagamento das verbas suspensas pelo Governo, na ordem dos milhares de milhões de dólares. E terminou com uma enxurrada de e-mails, todos com a mesma justificação genérica e parca em detalhes: os programas não se alinhavam com os objectivos da presidência. Estão agora efectivamente cancelados mais de 90% dos contratos da USAID, que representavam um total de 60 mil milhões de dólares em ajuda internacional. Sobrevivem apenas cerca de 500 projectos que estavam em curso, embora sob fortes constrangimentos e muitas dúvidas sobre o seu futuro imediato.
O corte geral na ajuda externa decretado pela Administração Trump atinge, ao contrário do que fora prometido, a assistência alimentar urgente a crianças desnutridas, campos de refugiados em todo o mundo e programas globais de prevenção e controlo de doenças como a sida, malária, ébola, tuberculose ou a poliomielite. Só no caso da malária, cai uma iniciativa que protegia mais de 20 milhões de pessoas em dez países africanos e outra que visava 53 milhões de pessoas através da distribuição de redes mosquiteiras, testes e medicamentos. Na tuberculose, suspende-se o principal consórcio mundial de pesquisa, prevenção e tratamento da doença, o Smart4TB. Quanto ao VIH, está paralisado o PEPFAR, a iniciativa lançada por George W. Bush que terá evitado mais de 20 milhões de mortes ao longo das duas últimas décadas, sobretudo na África subsariana.
Uma família em Oromia, na Etiópia, que recebera recentemente ajuda alimentar norte-americana
Reuters
Responsáveis do sector humanitário têm repetido ao longo das últimas semanas que estão em risco milhões de vidas, que está ameaçada a saúde pública e a segurança global, e que os EUA lesam irremediavelmente a sua influência e capital político, com analistas a alertarem para um vazio prestes a ser ocupado por adversários como a China. Tudo para eliminar gastos inferiores a 1% do orçamento federal norte-americano.
O The New York Times, a ABC News e a agência Reuters listam dezenas de exemplos de projectos, programas e serviços vitais agora terminados ou perante o seu fim iminente, que ajudam a desenhar um mapa-mundo dos impactos globais das decisões da Administração Trump e de Elon Musk, o multimilionário que dirige o gabinete de corte de despesa pública DOGE, cuja acção o próprio compara a uma motosserra, e que tem usado a sua rede social X para difundir acusações falsas contra a USAID:
- Na Ucrânia, terminam programas humanitários que prestavam assistência a um milhão de pessoas;
- Na República Democrática do Congo, um projecto do grupo Action Against Hunger vai deixar de tratar dezenas de milhares de crianças desnutridas a partir de Maio, o que, segundo a instituição de caridade, as colocará em “perigo de morte”, e termina um projecto que garantia a única fonte de água potável em campos de acolhimento para 250 mil pessoas deslocadas pelo conflito violento que assola o Leste do país;
- No Lesoto, Tanzânia e Eswatini, colapsa um projecto da fundação Elizabeth Glaser de fornecimento de medicamentos para o tratamento do VIH a mais de 350 mil pessoas, incluindo a 20 mil mulheres grávidas para evitar a transmissão do vírus aos seus bebés, e que estão agora em risco imediato de doença e morte;
- No Iémen, termina a prestação de auxílio alimentar porta-a-porta a crianças desnutridas e uma rede de cuidados de saúde que servia 200 mil pessoas;
- No Nepal, suspende-se um programa de cuidados de saúde pré e pós-natal que apoiava 3,9 milhões de crianças e 5,7 milhões de mulheres;
- Na Etiópia, foi interrompida a assistência alimentar a mais de um milhão de pessoas. O Ministério da Saúde local também perdeu o contrato com a USAID que garantia a actividade de 5 mil funcionários na prevenção do VIH e da malária, na vacinação e na ajuda a mulheres vulneráveis;
- No Afeganistão, extinguem-se centenas de equipas de saúde móveis que ajudavam nove milhões de pessoas;
- Na Síria, acabam programas de auxílio a cerca de 2,5 milhões de pessoas no nordeste do país e são encerradas uma dezena de instituições de saúde, incluindo um dos principal hospitais do país;
- No Bangladesh, acabam várias iniciativas que prestavam cuidados de saúde e de protecção contra violência a 600 mil mulheres e crianças;
- Na Colômbia, suspende-se um programa que fornecia comida, abrigo, água limpa e outros bens essenciais a 50 mil pessoas deslocadas, muitas oriundas da Venezuela;
- No Mali, terminam projectos que permitiam o acesso a água, alimentação e serviços de saúde a mais de 270 mil pessoas:
- No Burkina Faso, programas que permitiam o acesso a água potável a mais de 400 mil pessoas e que forneciam protecção contra a violência de género e infantil;
- Na Somália, 50 centros de saúde que recebem mais de 19 mil pessoas por mês encerraram porque os profissionais de saúde não estão a ser pagos;
- No Quénia, terminam programas de assistência alimentar a 600 mil pessoas que vivem em áreas afectadas pela seca;
- No Haiti, chegam também ao fim projectos que forneciam alimentos a 13 mil pessoas;
- Na Tailândia, são forçados a fechar portas hospitais que auxiliavam cerca de 100 mil refugiados da Birmânia;
- Na Nigéria, terminam iniciativas de ajuda alimentar que serviam 25 mil crianças.
Caiem também por terra dezenas de iniciativas dirigidas a comunidades discriminadas em vários países. No Vietname, finda um programa de promoção dirigido a pessoas com deficiência, através do treino de cuidadores e do fornecimento de assistência médica em casa. Na África do Sul, suspende-se o financiamento a oitenta casas-abrigo que acolhiam 33 mil mulheres vítimas de violação e violência doméstica. No Uganda, perde financiamento uma organização que trabalhava na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis junto da comunidade LGBTQ. Na Índia, encerraram as primeiras três primeiras clínicas do país com cuidados de saúde direccionados para a comunidade transgénero, atingindo quase cinco mil pessoas.
“Efeito devastador”, diz Guterres
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse esta sexta-feira que estava profundamente preocupado e que considerava o corte na ajuda externa norte-americana “especialmente devastador” para pessoas vulneráveis em todo o mundo. “Continuar com estes cortes tornará o mundo menos saudável, menos seguro e menos próspero. A redução do papel humanitário e da influência da América será contrária aos interesses norte-americanos globalmente”, disse.
As Nações Unidas sublinham a natureza contraproducente da decisão norte-americana apontando, por exemplo, a interrupção de vários programas que visavam o combate ao narcotráfico, nomeadamente do fentanil, e ao tráfico humano, o que terá como consequência potencial um aumento da pressão migratória sobre as fronteiras dos EUA.
Charlotte Slente, secretária-geral do Conselho Dinamarquês para os Refugiados, disse ter ficado chocada após receber mais de 20 notificações de rescisão de projectos em vários países, incluindo no Sudão, Iémen e Colômbia, que a organização operava em parceria com a USAID. “Estas rescisões não são apenas violações flagrantes de contratos, mas também colocam em risco as vidas de milhões de algumas das pessoas mais vulneráveis do mundo”, disse.
“Embora seja compreensível que os novos governos queiram rever a sua assistência ao desenvolvimento no estrangeiro, as decisões do Governo dos EUA foram abruptas e unilaterais e a sua justificação é incompreensível”, acusa Slente.
A presidente da maior associação mundial de profissionais de combate ao VIH, Beatriz Grinsztejn, também referiu que os cortes podem fazer com que as redes de prevenção e tratamento “colapsem” em vários países e reverter anos de progresso na contenção da epidemia, nomeadamente na África do Sul, o país em que mais pessoas vivem com a doença (cerca de 8 milhões).
Impacto também nos EUA
O carácter aparentemente imponderado do corte da ajuda externa decretado pela Administração Trump é, precisamente, o centro da questão debatida agora nos tribunais norte-americanos, em dois processos que opõem ao Governo as empresas e organizações contratadas pela USAID para implementar os seus projectos no terreno. Empresas como a Chemonics e a DAI, responsáveis por milhares de postos de trabalho agora em risco nos EUA e em dezenas de outros países, requerem o pagamento de verbas devidamente aprovadas pelo Congresso, e portanto não passíveis de serem congeladas pela Casa Branca, e em muitos casos referentes a acções já executadas e terminadas.
Trabalhadores da USAID abandonam a sede em Washington em lágrimas, perante aplausos e palavras de solidariedade de manifestantes
Reuters
Também em risco pela decisão da Administração Trump estão vários produtores norte-americanos dos alimentos que eram comprados pela USAID e distribuídos em todo o mundo, e que agora apodrecem em armazéns, tal como toneladas de medicamentos cuja distribuição foi suspensa.
O caos estende-se a Washington, com milhares de funcionários da USAID despedidos ou suspensos: gestores, economistas, especialistas em saúde pública e uma miríade de outros profissionais com décadas de experiência acumulada. Na quinta e sexta-feira, algumas centenas puderam entrar na sede da agência, em Washington, em lágrimas e com caixas de cartão, para retirar pertences dos seus antigos escritórios, escoltados por seguranças e com ordem para não demorarem mais que 15 minutos. Em dezenas de países, outros tantos milhares de funcionários da agência realizam agora um inesperado regresso aos EUA, em muitos casos tendo de retirar filhos de escolas ou de interromper tratamentos médicos, num cenário agravado pelo congelamento de verbas, a suspensão de telecomunicações e o fim de serviços de segurança em nações instáveis.
Muitos destes funcionários avançam também agora para os tribunais onde, tal como as empresas e organizações parceiras da USAID, acusam a Administração Trump de violar contratos e gerar perdas inimagináveis dentro e fora do país – processos que, segundo especialistas legais citados pela ProPublica, têm o potencial de vir a lesar os contribuintes norte-americanos.
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