A Europa é o continente que está a aquecer mais rapidamente na Terra e 2024 foi o ano mais quente de que há registo na Europa, com temperaturas recorde nas regiões central, oriental e sudeste. O Serviço de Monitorização das Alterações Climáticas do Copérnico (C3S, na sigla em inglês) e a Organização Meteorológica Mundial (OMM) voltaram a juntar-se para analisar as anomalias do clima na Europa em 2024 e os dados mostram uma fotografia nítida do desastre climático que vivemos — e que não podemos ignorar.
Nos vários mapas que revelam os eventos extremos que afectaram os europeus, Portugal surge em destaque no gráfico dos incêndios com 110 mil hectares (1100 km2) queimados numa semana de Setembro, o que representa cerca de um quarto da área ardida anual total da Europa.
O ano de 2024 foi diferente: em vez do padrão de contrastes entre Norte e Sul, os indicadores mostram uma separação entre o que se passou no ano passado entre Leste e Oeste no continente europeu. Assim, verificou-se “um contraste marcante entre o Leste e o Oeste nas condições climáticas, com condições extremamente secas e frequentemente recordes de calor no Leste, e condições quentes mas húmidas no Oeste”.
O relatório Estado do Clima na Europa 2024, que quer dar “uma perspectiva holística, mas concisa, do clima da Europa”, envolveu mais de uma centena de investigadores e vem acompanhado de uma colecção de 130 quadros e infografias que reflectem em mapas bastante evidentes os contrastes e os extremos de 2024. “A Europa é o continente que regista o aquecimento mais rápido e os impactos das alterações climáticas neste continente são evidentes”, começam por assinalar os cientistas.
Mas vamos a alguns dos pontos mais negros: 2024 foi o ano mais quente de que há registo na Europa, com temperaturas recorde nas regiões central, oriental e sudeste; as tempestades e as inundações (o caso de Valência, em Espanha, destaca-se neste capítulo) causaram pelo menos 335 mortos e afectaram cerca de 413 mil pessoas.
Anomalias e extremos na temperatura da superfície do ar em 2024, tendo como referência o período de 1991 a 2020
C3S/ECMWF
“Mais longe, mais depressa, e juntos”
No comunicado de imprensa, assim como na conferência de imprensa sobre o relatório, a secretária-geral da OMM, Celeste Saulo, insistiu que “cada fracção adicional de um grau de aumento da temperatura é importante porque acentua os riscos para as nossas vidas, para as economias e para o planeta”.
“A adaptação é uma necessidade”, reforça a meteorologista. A OMM e os seus parceiros, explica, estão a intensificar esforços para reforçar os sistemas de alerta precoce e os serviços climáticos. “Estamos a fazer progressos, mas temos de ir mais longe, mais depressa, e juntos.”
Os dados confirmam que apenas 51% das cidades europeias dispõem agora de um plano específico de adaptação às alterações climáticas. São poucas, é verdade. Mas é preciso olhar para o copo meio cheio e ter em conta que, em 2018, essa percentagem ficava-se pelos 26%.
As ameaças são múltiplas e o seu impacto variável de região para região. Porém, há algumas que se destacam. “O relatório de 2024 revela que quase um terço da rede fluvial excedeu o limiar de inundação elevada e que o stress térmico continua a aumentar na Europa, sublinhando a importância de criar uma maior resiliência”, sublinha Florence Rabier, directora-geral do Centro Europeu para as Previsões Meteorológicas a Médio Prazo (ECMWF, na sigla em inglês), citada no comunicado de imprensa.
Carlo Buontempo, director do Copérnico, destaca o calor: “Observámos a mais longa vaga de calor no sudeste da Europa e uma perda de massa glaciar recorde na Escandinávia e em Svalbard.” Mas 2024 foi também um ano de “contrastes climáticos acentuados entre a Europa oriental e ocidental”, insiste o investigador, que encara este relatório como “um tesouro de informações de qualidade sobre o nosso clima em mudança” que deve ser usado para fundamentar as nossas decisões.
Área ardida na Europa e no Mediterrêneo em 2024
EFFIS/CEMS/C3S/ECMWF
Portugal e os incêndios
Feitos os destaques gerais do clima na Europa em 2024, foquemo-nos em Portugal. Olhando para os vários mapas, com indicadores que vão desde a precipitação ao stress térmico, ondas de calor e seca, a Península Ibérica quase parece a salvo dos extremos climáticos. Pura ilusão. “Não há regiões a salvo na Europa”, reagiu Carlo Buontempo na conferência de imprensa, quando confrontado com esta possibilidade de as imagens nos induzirem em erro.
Especificamente sobre Portugal, o relatório é claro no ponto-chave sobre incêndios florestais, onde se destaca: “Em Setembro, os incêndios em Portugal queimaram cerca de 110 mil hectares (1100 km2) numa semana, o que representa cerca de um quarto da área ardida anual total da Europa. Estima-se que 42 mil pessoas tenham sido afectadas por incêndios florestais na Europa”.
Os incêndios entre 15 e 20 de Setembro afectaram vários distritos no nosso país (sobretudo o de Aveiro) e causaram nove mortes, entre as quais as de quatro bombeiros, e mais de 150 feridos, levando o Governo a declarar situação de calamidade em vários municípios. Os fogos que deflagraram no Norte e no Centro do país levaram ainda à abertura de 237 investigações e à detenção de 13 suspeitos, indicou a Polícia Judiciária em Novembro.
Várias aldeias tiveram de ser evacuadas, em operações que mobilizaram cinco mil bombeiros, nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra, Porto, Vila Real e Viseu, onde dezenas de casas foram destruídas e culturas dizimadas.
Na altura, o sistema europeu de observação terrestre do Copérnico anunciou que arderam em Portugal continental cerca de 135 mil hectares entre 15 e 20 de Setembro, dos quais mais de 116 mil no Norte e no Centro, concentrando a maior parte da área ardida em território nacional.
Monitorização é chave
Questionada pelo Azul, Francesca Guglielmo, cientista sénior do C3S, dá mais alguns detalhes sobre este ponto negro. “O mapa de anomalias do índice meteorológico de incêndios/perigo de incêndio mostra que a Península Ibérica esteve exposta a até 25 dias (sudeste de Espanha) de perigo de incêndio “extremo”, condições que expressam o potencial de desenvolvimento de incêndios de mais de 10 mil hectares (se houver ignição).”
Condições secas e quentes, combinadas com factores de vento, facilitam a propagação e a intensificação dos incêndios, já se sabe. E à medida que as temperaturas aumentam e as ondas de calor se tornam mais frequentes, mais intensas e mais generalizadas, o potencial de incêndios aumenta. “Nos últimos anos, os Verões europeus registaram um aumento do potencial de incêndios florestais, com um número crescente de incêndios de maiores dimensões e uma época de incêndios alargada”, confirma Francesca Guglielmo.
Na conferência de imprensa, Florence Rabier, directora-geral do ECMWF, anunciou que está em curso um grande esforço para melhorar as ferramentas de monitorização e mitigação dos incêndios florestais. Com a ajuda da Inteligência Artificial e as imagens de satélites, os serviços de emergência do Copérnico prevêem ter, em breve, um programa capaz de detectar a probabilidade de incêndios em determinadas regiões com antecipação, olhando, nomeadamente, para as áreas onde a vegetação tem condições para ser mais inflamável.
Anomalias e extremos na média anual do caudal dos rios: dos vermelhos que correspondem a valores abaixo da média ao azuis que correspondem a anomalias acima da média)
CEMS/C3S/ECMWF
Perigo de inundações
“A Europa é uma das regiões com o maior aumento previsto do risco de inundações e um aquecimento global de 1,5°C poderá resultar em 30 mil mortes anuais na Europa devido ao calor extremo”, refere o comunicado de imprensa. O risco das inundações para o futuro vem acompanhado de um lembrete da tragédia em Outubro de 2024 quando, em Espanha, se registaram “precipitações extremas e inundações que provocaram impactos devastadores e vítimas mortais na província de Valência e nas regiões vizinhas”.
Depois, num perigo que também se destaca em Portugal, os cientistas notam que “30% da rede fluvial europeia excedeu o limiar de inundação “elevada” durante o ano, enquanto 12% excedeu o limiar de inundação “grave””. Em Setembro, enquanto Portugal ardia, a tempestade Boris afectou centenas de milhares de pessoas, com inundações, vítimas mortais e danos em partes da Alemanha, Polónia, Áustria, Hungria, República Checa, Eslováquia, Roménia e Itália.
Sobre o calor, recuamos a Julho de 2024, quando o sudeste da Europa registou a mais longa vaga de calor de que há registo, que durou 13 dias consecutivos e afectou 55% da região. “O número de dias com, pelo menos, “forte stress térmico” (66) e de noites tropicais (23) no sudeste da Europa durante o Verão foi recorde”, regista o relatório.
Anomalias e extremos na precipitação anual em 2024. tendo como referência o período de 1991-2020 (azul escuro o mais húmido, castanho escuro as áreas mais secas)
C3S/ECMWF
Contrastes climáticos
De volta ao atípico contraste no clima da Europa em 2024, os especialistas confirmam que “as pessoas que vivem em diferentes partes da Europa experimentaram condições meteorológicas e climáticas muito diferentes, com um nítido contraste Leste-Oeste de condições secas, ensolaradas e extremamente quentes no Leste e condições mais nubladas, húmidas e menos quentes no Oeste.
“Este contraste Leste-Oeste era visível em muitas variáveis climáticas, como a temperatura, a precipitação, a humidade do solo, as nuvens, a duração do sol, a radiação solar e o potencial de produção de energia solar. Consequentemente, o contraste também se reflectiu em termos da rede fluvial europeia, com fluxos fluviais generalizados superiores à média na Europa Ocidental e inferiores à média na Europa Oriental”, nota o relatório.
Mas, porquê esta mudança no padrão habitual que antes desenhava uma fronteira entre norte e sul da Europa? Durante a conferência de imprensa, os vários especialistas preferiram evitar certezas absolutas, mas a circulação da atmosfera influenciada pelas altas temperaturas do oceano, foi uma das possíveis explicações invocadas.
Além desta marca distintiva em 2024, o relatório destaca outros sinais invulgares. “Em 2024, os glaciares da Escandinávia e de Svalbard registaram as taxas de perda de massa mais elevadas de que há registo e a maior perda de massa anual de todas as regiões glaciares a nível mundial, com uma perda de espessura média de 1,8 metros na Escandinávia e de 2,7 metros em Svalbard”.
Ainda sem sair do território árctico norueguês, fica mais um aviso: “Pelo terceiro Verão consecutivo, a temperatura média em Svalbard atingiu um novo máximo histórico. Nas últimas décadas, esta zona tem sido um dos locais que regista um aquecimento mais rápido na Terra.”
Na verdade, os dados mostram que “os glaciares de todas as regiões europeias registaram uma perda de gelo”. “A Europa Central é uma das regiões do mundo onde os glaciares estão a diminuir mais rapidamente.”
Mas não há só espinhos na rosa — há progressos, nomeadamente na área das energias renováveis. A proporção de produção de electricidade a partir de energias renováveis na Europa atingiu um máximo histórico em 2024, descreve o relatório, com 45%, em comparação com o anterior recorde de 43% em 2023, “reflectindo os esforços da Europa no sentido de um sistema energético descarbonizado”. De acordo com os relatórios, o número de países da UE onde as energias renováveis produzem mais electricidade do que os combustíveis fósseis quase duplicou desde 2019, passando de 12 para 20 Estados.
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