Há quem lhe chame problema de primeiro mundo. Talvez seja, mas é também sintoma de uma maneira de gerir o espaço público que nos custa tempo e paciência. Falo da Gira, o sistema de bicicletas partilhadas de Lisboa. Quando funciona a cidade parece mais curta e mais fresca. Quando falha ficamos a ver as colinas crescer.
Quase todos os dias, em hora de ponta, recorro à Gira para percorrer quatro ou cinco quarteirões. É um sopro de vento contra este calor de estufa. Raras são as vezes, porém, em que não me cruzo com um dos três monstros de serviço: erro de API (Application Programming Interface, ou Interface de Programação de Aplicações), falha de comunicação ou bloqueio da doca. Os dois primeiros fazem-me largar o telefone e voltar ao metro. O último obriga-me a ligar para o apoio ao cliente, ouvir a melodia que já conheço de cor e esperar cinco minutos de meditação forçada até que o sistema aceite que aquela viagem, na verdade, nunca existiu.
Há méritos a reconhecer. O executivo municipal alargou a rede de docas e tornou o serviço gratuito para residentes. São ganhos concretos. Persistem, contudo, lacunas graves na componente tecnológica visto que a aplicação continua lenta, instável e pouco intuitiva. É difícil aceitar que a EMEL, empresa com receitas milionárias, não consiga contratar uma equipa capaz de a pôr a funcionar de forma fiável. Custa ainda mais compreender quando um grupo de alunos da NOVA IMS desenvolveu o mGira, uma interface mais simples e eficaz do que a aplicação oficial, e chegou a entrar em contacto com a EMEL para oferecer colaboração. A empresa escusou-se a integrar a proposta, bloqueou o acesso ao serviço de dados e lançou uma actualização que em nada melhorou a experiência do utilizador. A partir daí, deixou de ser apenas um problema técnico e passou a parecer um bloqueio deliberado à mudança.
Pergunto-me o que falta. Transparência sobre o código? Licitar o desenvolvimento a quem já provou competência? Abrir a API e deixar a comunidade inovar? Qualquer solução serve melhor os utilizadores do que a teimosia actual. Após essa actualização, não houve qualquer anúncio formal com vista a uma nova melhoria que tornasse a aplicação efectivamente funcional para os utilizadores. Carlos Moedas defende a Lisboa de inovação e talento, contudo nesta matéria a cidade deu um passo e agora patina no mesmo lugar.
Atrasar um serviço que já existe mina a confiança em soluções partilhadas. Não basta multiplicar docas se a tecnologia que as liga aos utilizadores falha quando mais é necessária.
Há exemplos lá fora. Paris, por exemplo, abriu o acesso ao código do Vélib. Carlos Moedas, não se lhe pede que reinvente a roda. Bastava apenas vontade de resolver estes problemas, definir prazos públicos de correcção de falhas, consultar estudantes como os que se voluntariaram e criaram a mGira e medir a satisfação dos utilizadores em tempo real. Se a EMEL tem lucro, é para que seja usado.
Talvez daqui a alguns meses durante a campanha eleitoral, o Presidente da Câmara de Lisboa surja num tutorial no TikTok a explicar como desbloquear uma bicicleta à terceira tentativa. Será engraçado, mas não resolverá o percurso curto que eu, você e tantos precisamos de fazer agora. Até lá, o disco gira e toca o mesmo.
Bom, que tempos estranhos, estes, em que cidades fábricas de unicórnios não conseguem fazer funcionar, com decência, uma simples aplicação de bicicletas partilhadas.
#Gira #disco #toca #mesmo #app #das #bicicletas #Lisboa #não #funciona #Megafone