Terça-feira foi um dia desafiante para a jornalista Inês Duarte de Freitas, um dia que acontece com frequência na vida de um profissional de um jornal diário, o “escrever para o dia”, mas que envolveu sair de Lisboa, fazer uma entrevista de vida ao antigo embaixador Bouza Serrano — que tem um título maravilhoso, “Não voto no Presidente, escrevo ‘Viva o Rei’ no boletim” —, voltar à redacção, desgravar e transformar duas horas de conversa numa entrevista de três páginas, além de a preparar para sair perfeita na edição online, com as fotografias de Rui Gaudêncio, as ligações para outros textos relacionados, etc., um trabalho que, em circunstâncias ideais, demoraria mais de um dia a fazer.
Estava Inês nesta azáfama quando soubemos, por notificações atrás de notificações a cair nos telemóveis (da BBC ao New York Times, passando pelo El País e o The Guardian), que Taylor Swift estava noiva. Tinha sido pedida pelo jogador de futebol americano Travis Kelce. Precisávamos de dar a notícia, mas, como se diz por aqui (e creio que noutras profissões) “não tínhamos mãos”. Decidiu-se que seria outra jornalista a fazer. Inês estava em polvorosa, por um lado a tentar concentrar-se no seu trabalho, por outro, a desejar escrever a notícia do noivado porque tem todo o contexto. Volta e meia, no relativo silêncio da redacção, Inês exclamava uma informação que devia estar no texto de Taylor e desconhecia se estaria ou não. Por fim, desanimada e a pensar em todas as notícias que gostaria de ter dado (o que nos move é “dar notícias”) e não o fez porque estava assoberbada em trabalho, de folgas ou de férias, soltou, bem do âmago, um dramático: “Tiram-me tudo…” Demos uma gargalhada, eu e Rita Caetano — que estava a escrever sobre jovens mulheres chefs.
Serve esta história para explicar aos leitores maiores de 30/35 anos que o impacto de Taylor Swift na vida de milhões de pessoas — representados por aqueles que assistiram à sua digressão, que foi a mais rentável de sempre — é gigantesco e nós não temos essa noção. Para mim, Swift é uma cantora que foi enganada, que perdeu (entretanto já recuperou) os direitos às canções que escreveu (letra e música) e que estas reflectem a sua vida. Para os fãs, os chamados swifties, é uma amiga, que canta as mágoas de amor da adolescência e da vida adulta, mas também é uma resiliente, que tem sabido resistir às investidas da vida (e de quem a odeia).
Quantas vezes, na nossa adolescência ouvimos, non stop, a mesma música de amor, de um amor que partiu, de um amor que não se concretizou, de um amor que parecia para sempre e puf… Mas nunca ouvimos Taylor Swift. Volta e meia, Inês dizia frases em inglês, eram estrofes de canções escritas pela artista sobre o que queria e não acontecia na sua vida. Como tantos, também ela queria casar. E, a beleza de Travis Kelce — já o escrevi noutra newsletter — é ser confiante (a namorada tem uma fortuna e uma fama estratosféricas que o poderiam fazer sentir-se inferior), saber escutar e agir em conformidade com o que ouviu, tudo o que qualquer pessoa procura num parceiro.
Na manhã seguinte, Inês Duarte de Freitas atacou o tema e fez o que chamamos um follow-up, que foi muito lido. Eu dediquei-me a responder aos leitores que, no dia anterior, tinham comentado a notícia do noivado com frases como “Taylor quê???”, frases que voltaram a aparecer num outro texto que editei do The Washington Post, com o título Porque é que o mundo se passou quando Taylor Swift ficou noiva — a esses estou a responder com esta newsletter.
O triste de muitos dos leitores, alguns com estatuto de “moderador” e de “experiente”, é não lerem os textos, ficarem-se só pelos títulos. Esta notícia em concreto é uma explicação do porque é que uma geração “se passou” quando soube, é o contexto, é uma parte daquilo que temos de saber para os compreender melhor — é a jornalista da CBS News na Casa Branca a “passar-se”, é a tenista polaca Iga Swiatek que só falou desse tema na conferência de imprensa em que devia prestar declarações sobre a sua vitória, são umas atrás das outras, pessoas nas suas vidas, para quem esta notícia teve um enorme impacto e as razões para tal.
E o “sonho” vai continuar e a vida das celebridades continuará a ter o impacto que lhe quisermos dar, a de Taylor Swift tem o poder do escapismo, a fuga à realidade, uma fuga que tanto queremos agarrar num mundo cheio de homens maus, que tomam más decisões, num mundo em que são criados chatbots que levam crianças e jovens a ter comportamentos perigosos, em última instância, a tirarem a sua própria vida — entretanto, a Meta de Zuckerberg criou um chatbot que imita Taylor Swift e outros artistas, sem autorização. O noivado é a fuga aos problemas reais, às pessoas que morrem em Portugal nos incêndios ou por falta de assistência; é a abstracção a mais uma vítima de violência doméstica — João da Silva escreve sobre o caso de Machico. Precisamos destes intervalos na nossa vida para conseguirmos manter alguma sanidade, está estudado.
É preferível sonhar com o planeamento de um casamento, quando vai ser, que designer a vai vestir, quem serão os convidados, se a cantora nos vai convidar — vi um reel no Instagram, de uma mãe norte-americana a explicar a um filho de 4 anos porque é que não iam ao casamento, a criança insistia “mas nós conhecemo-la…”, “sim, mas ela não nos conhece a nós”. Nos comentários, com graça, uma mãe dizia que tinha tido exactamente a mesma conversa com a sua filha de 27 anos.
Também vi um excerto de um podcast cujas intervenientes estavam satisfeitíssimas com o anúncio do noivado, mas perguntavam se Taylor Swift não se devia pronunciar sobre a Palestina. É que a cantora e compositora tem usado a sua voz para algumas causas como a LGBTQ+ ou, durante a campanha às presidenciais norte-americanas, milhões estiveram à espera que indicasse o seu sentido de voto, o que levou Donald Trump a dizer claramente que a odiava — desta vez, felicitou o casal. Swift é também criticada por ser a maior poluidora entre os multimilionários, por causa dos seus concertos e das escapadinhas que deu para ver o namorado.
E, o futuro do casal está já a ser traçado nos meios norte-americanos mais conservadores, com a sugestão de que Swift deixe a profissão e vá para casa cuidar do marido; que Swift compreenda que ele é mais importante do que ela — se é que ela quer ser feliz e ver o seu homem feliz… Portanto, caros leitores, o anúncio do noivado de Taylor Swift e Travis Kelce é também político, sobretudo num mundo tão polarizado como aquele em que vivemos.
É o sonho daqueles cavalheiros que cospem ódio, com a Bíblia numa das mãos, à espera de mulheres que nem naquele livro sagrado existem, submissas. E é também o sonho das meninas, de serem pedidas em casamento rodeadas de milhares de flores, as suas preferidas, por um homem que seja seu companheiro, amigo, que as faça rir, que ria com elas, que as ame e que as respeite. Taylor Swift será uma desilusão para todas elas — e para os feministas, em geral — se um dia decidir que a felicidade reside em abdicar de ser quem é para servir um homem.
Boa semana!
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