Há muitos acontecimentos misteriosos numa casa. Pode ser “uma cama que se faz e desfaz todas as noites”, “um tacho a fumegar preparado em cima do fogão” ou “mil mãos pequeninas que nunca param de trabalhar”. Que percepção terá uma criança do invisível que a envolve enquanto cresce?
“A casa invisível não se vê, mas fica num lugar à vista de toda a gente”, é assim que se entra no livro. E na casa, talvez a nossa. “Apesar de querer falar de um tema muito concreto, foi a pensar nos elementos de mistério e de magia que uma casa tem para uma criança que me surgiu a primeira frase deste livro”, diz ao PÚBLICO Francisca Camelo, que se aventura pela primeira vez na literatura para a infância, “com o medo que acompanha todas as estreias”, a convite de Inês Fonseca Santos e Paulo Caramujo, através da Associação para a Promoção Cultural da Criança (APCC).
A autora de livros de poesia para adultos revela: “O tema a explorar já habitava a minha cabeça há algum tempo. Queria escrever para crianças sobre o trabalho doméstico, mas todas as possíveis abordagens me pareciam demagógicas ou, então, demasiado vagas — e não é possível aniquilar o pendor político do conceito de trabalho (doméstico ou não).” Mas queria também “escrever algo que a Francisca miúda quisesse ler e por isso o livro tinha de incluir coisas mágicas, impossíveis, fantásticas”. Assim fez.
Desenhar o invisível
Teve por companhia a ilustradora Carolina Celas, que ficou agradada por não ter “um texto directo”, já que, no seu trabalho, gosta “do desafio de poder criar e imaginar para lá do próprio texto”. A artista plástica disse ao PÚBLICO, via email, que ajudou ao seu processo criativa “receber um texto/poema da Francisca já bem estruturado” e com o qual se identificou.
Com elementos muito gráficos e descritivos, “mas ao mesmo tempo falando de algo invisível, não palpável, das emoções, em que está subentendida a forma como por vezes não nos apercebemos ou não valorizamos os pequenos detalhes e gestos do dia-a-dia de que fazem por nós”, a narrativa/poema entusiasmou a ilustradora, mas também a convocou para um grande desafio. Ilustrar um livro que “não se vê — páginas brancas, portanto!”, concluiu divertida.
“Não conseguimos ver as árvores da casa invisível, mas sente-se a brisa quando os seus galhos abanam e o cheiro a verde em dias de sol”
Carolina Celas
Tentou então camuflar os animais que fazem as tarefas em objectos da casa, usar referências de brincadeiras e coisas banais e das actividades diárias: “O telhado da casa é uma casa de mantas, ‘os pássaros que fazem a cama’ são o padrão do edredão, ‘as formigas que fazem curativos’ são o padrão dos pensos rápidos nos joelhos.”
Carolina Celas acredita que o livro “joga com a percepção do leitor e que a leitura se vai fazendo por camadas”. E diz que se o folhearmos de frente para trás e de trás para a frente, iremos perceber que há uma série de elementos que se vão interligando e que no fim fazem sentido. “Tudo converge para a cena final, que afinal é o amor.”
Dá um exemplo da forma como foi pensando o livro: “Por exemplo, as guardas começam numa parede branca sem imagens e a guarda final enfatiza a importância do amor e da família ao pendurar a fotografia nessa mesma parede. Ao mesmo tempo, essa parede aparece na página das memórias num plano mais afastado e no próprio livro a imagem da mesa da refeição, que é onde a família se reúne sempre, acaba por ser a criação de mais uma memória e ser a ideia principal para terminar a história.”
Para Francisca Camelo, este livro, “apesar de querer pensar a lógica concreta do cuidado informal (que é amor e que é também trabalho doméstico conjunto — ou, pelo menos, devia sempre sê-lo), começa precisamente por falar do que não se vê”. Pois valoriza “a origem dessa força de acção colectiva que constitui a magia das coisas invisíveis que são, por isso mesmo, incríveis”.
Um dos títulos vencedores do Prémio Ibérico Álvaro Magalhães
A autora quis dar visibilidade também “‘às pessoas femininas, masculinas ou plurais, que fazem parte da família de formas iguais’, mesmo que não façam, à partida, parte do típico quadro da dita ‘família nuclear’”. E acrescenta: “Mesmo numa cidade, é preciso uma aldeia para criar uma criança.”
A Casa Invisível ganhou o Prémio Ibérico de Literatura Infanto-Juvenil Álvaro Magalhães ex aequo com Os Avós São as Pessoas Preferidas dos Pássaros, de Raquel Patriarca (ilustração de Sérgio Condeço, edição da Nuvem de Letras), anunciado nesta sexta-feira no festival Onomatopeia, em Valongo. As autoras vão partilhar 8 mil euros. A menção honrosa, 3 mil euros, foi para Gaspar, com os Pés Bem Assentes na Lua, de Rita Taborda Duarte (ilustração de Sebastião Peixoto, edição da Editorial Caminho).
“Nos dias de festa é uma alegria”
Carolina Celas
Para o júri, composto por Álvaro Magalhães, Adélia Carvalho e Margarida Noronha, editora da Kalandraka, A Casa Invisível “constrói-se num registo narrativo, sensível e intimista, com cujos protagonistas igualmente todos nos identificamos (as mães, os pais, os avós, as avós). A casa invisível habita a casa material: é o amor, esse sentimento inerente ao humano que se reflecte em actos tão diferentes quanto as tarefas diárias mais prosaicas e nos gestos de entrega, partilha e protecção mais profundos”.
Referindo-se a Álvaro Magalhães, disse a autora: “É sempre estranhamente bonito constar da lista de finalistas de um prémio com o nome de um autor que tanto lemos quando tínhamos ainda toda uma vida futura em suspenso.” Acrescentando: “E, depois, não há nada que pague estar lado a lado com autores e autoras que admiro tanto, particularmente a Raquel Patriarca e a Rita Taborda Duarte, magas da escrita infanto-juvenil”, disse ao PÚBLICO antes de saber que com elas iria partilhar esta distinção.
Para concluir: “A vida traz-nos a lugares inesperados. Só isso é já um prémio.” Agora, visível.
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