Não há como fugir a isto: muitos dos principais desafios, potencialidades e fragilidades da democracia são indissociáveis dos universos cultural e artístico. A par da educação, estes ecossistemas-âncora moldam, por múltiplas vias, valores como o poder, a ética, a justiça, a liberdade, a responsabilidade, a emancipação crítica, a sensibilidade e o gosto, a imaginação, a empatia e o cuidado, a tolerância, a confiabilidade e a inquietação (de quem não se deixa ficar). No final do dia, é a incorporação ou não destes princípios que marcará a diferença entre cidadãos activos e comprometidos e meros súbditos, passivos e acríticos, da engrenagem democrática.
A democracia constitui um fundamento vital para a construção de sociedades perfectíveis, mas não é um sistema perfeito, e essa meta não será, porventura, alcançável em termos socioeconómicos. Daí também ter sido sempre o modelo político mais criticado ao longo da história, como lucidamente apontava o falecido escritor Mario Vargas Llosa. Talvez por, paradoxalmente, a natureza e desafio maior do paradigma democrático estarem ligados à defesa de algo aparentemente natural e evidente, mas, ao mesmo tempo, extremamente exigente: a coexistência na diversidade.
Mas quando se alude ao papel nuclear da cultura e das artes nesta demanda intemporal, de que estamos a falar em concreto? Fica, por vezes, a sensação de que se trata de um chavão repetidamente reproduzido e gasto, mas sem uma real, abrangente e consciente percepção colectiva das profundas implicações desse statement.
Neste ponto, poucos terão descrito melhor do que Italo Calvino o papel da literatura (e, no fundo, das artes em geral) na vida humana, o qual extravasa, e muito, a sua primeira e basilar dimensão ficcional e simbólica. Segundo ele, são poucas mas insubstituíveis as coisas a que as obras literárias e outras manifestações artísticas podem ambicionar e ensinar: “a forma como olhamos para o próximo e para nós próprios, a forma como atribuímos valor às coisas pequenas ou grandes, a forma como encontramos as proporções da vida, e o lugar do amor nela, e a sua força e o seu ritmo, e o lugar da morte, a forma como pensamos e não pensamos nela, e outras coisas necessárias e difíceis, como a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor”. É por isso que, em termos formativos, as noções de cultura geral e de humaniores litterae, de studia humanitatis, se afiguram primaciais, independentemente da área de especialização de um indivíduo.
A arte tende a operar esse movimento fundamental de relativização do eu, descentramento e incremento da humildade e compaixão, com tudo o que isso pode trazer de porosidade, questionamento (Flaubert falava nos “solavancos interiores” que certos livros lhe provocavam) e transformação de percepções e de atitudes, fazendo-nos compreender melhor o outro, conhecermo-nos como outra pessoa, na linha do que Marcel Proust preconizava. Na verdade, a cultura (não apenas a literatura e a filosofia, mas também as artes) permite que nos distanciemos do exercício imediato do nosso trabalho, que nos vejamos a trabalhar, a estar na rua e, ao mesmo tempo, à janela, que nos observemos a viver e a influenciar a vida.
Na obra A Literatura, o Bem que paga!, o eminente professor e crítico Antoine Compagnon sublinha ainda a importância da competência narrativa e da invenção de imagens e criação de metáforas: “Todos são melhores quando sabem contar histórias”. De certa forma, esta ideia faz lembrar aquele bruxuleante pensamento de Afonso Cruz, em que este nos relembra, poeticamente, que, no fundo, nós somos feitos de histórias, e não de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros.
E não é difícil constatar que praticamente todos os conceitos sociológicos e económicos são literários ou poéticos. Desde o free lunch (almoços grátis) ao free rider (o passageiro clandestino, aquele que tira partido de algo à custa dos outros), da profecia auto-realizável à serendipidade (encontrar o que não se procura; descobrir coisas boas, úteis, interessantes de modo involuntário), do efeito perverso à janela quebrada, da fábula das abelhas ao happenstance (o acaso; estar no sítio certo à hora certa), dos blindspots (enviesamentos cognitivos) ao cisne negro (o acontecimento raro e de longo alcance) ou ao efeito borboleta (baseado na teoria do caos de Edward Lorenz, nos anos 70 do século passado) – são muito e variados os exemplos em que se vai beber à literatura os principais fenómenos que perpassam o quotidiano. Como também enfatizou o Papa Francisco num dos seus escritos, “de uma forma ou de outra, a literatura tem que ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões existenciais, com os seus desejos e os seus significados”.
A isto acresce uma necessidade vital de o indivíduo, independentemente do seu ofício, se interrogar sobre as suas próprias percepções e crenças, de transgredir e subverter, de pensar contra si mesmo e os seus preconceitos cognitivos, de sair da sua zona de conforto – num movimento contra a imobilidade, a alienação, a “satisfação do efeito Mateus” (vantagem acumulada), o “fatalismo da doença dos custos”. Na verdade, é através dos livros que o homem aprende algo fundamental: as coisas nunca ou raramente correm como deveriam, mas ele saberá mudar de ideias. E alterar o ponto de vista em democracia não é/tem de ser uma espécie de “pecado mortal” ou uma atitude reveladora de fragilidade, incoerência ou oportunismo. Vivenciar e evoluir democraticamente também passa por experimentar, errar (melhor), retirar ilações, recuar, reformular, corrigir, propor novos caminhos ainda não explorados.
Neste contexto, e na relação directa da cultura e das artes com a democracia, a mediação assume um papel preponderante, embora muitas vezes não seja ainda uma função suficientemente enfatizada e valorizada, até na sua dimensão sociopolítica. Na verdade, são ainda muitos os contextos e instituições, tanto públicos como privados, e vários quadrantes do terceiro sector e da sociedade em geral em que a mediação cultural e artística acaba por ter um papel secundário, residual ou de “fim de linha”, sendo até, por vezes, confundida com as áreas da comunicação ou da animação. Há que questionar, alterar e diversificar os paradigmas de composição e funcionamento das equipas que operam no sector cultural e criativo, bem como incrementar e descentralizar, para esta profissão, as oportunidades formativas a nível académico.
O mediador é, antes de mais, aquele que medeia a dor, a fricção, o embate, o conflito que resulta do contacto e diálogo de um indivíduo com o diferente, o não habitual, o não óbvio, o inesperado, o desconhecido, o dissonante, o contraditório, o incómodo. Alguém que funciona como ponte, que contribui para disseminar a ideia de que a travessia é possível. Metaforicamente, o mediador está nos antípodas do guarda fronteiriço. A este título, como esquecer, por exemplo nos contextos televisivo e radiofónico, os contributos de figuras como o maestro António Victorino de Almeida, o historiador José Hermano Saraiva, o actor Mário Viegas, o etnomusicólogo Michel Giacometti, os escritores Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira ou Natália Correia, o professor João Bénard da Costa, o engenheiro José de Sousa Veloso, entre muitos outros? Para já não falar das novas vozes (vária delas anónimas) que democratizam o acesso dos públicos a múltiplos campos e temáticas culturais (e não só). Que se multiplique este alfobre de contagiadores, de homens e mulheres-vento, versáteis e desassossegados, que, num movimento boomerang, transformam e são transformados, que trilham velhas e novas sendas, que espalham inquietação e curiosidade, que desenham horizontes (mais) claros, sem imposições ou verdades absolutas, seja em contextos mediáticos, educativos ou não formais.
A mediação assenta em três requisitos que estão intimamente ligados a valores basilares do sistema democrático: saber do que fala, ser claro e consistente – o que equivale a falar de confiabilidade, integridade e acessibilidade (social e intelectual); ser empático, criativo, entusiasta, disponível e aberto – ou seja, privilegiar a humanização e maior horizontalização da relação, a ética, a informalidade focada e a escuta activa da diferença e da diversidade; ser desdobrável, versátil e com um olhar holístico e integrado sobre os assuntos, pois está tudo ligado, tendo a capacidade de estabelecer conexões menos habituais e até inesperadas entre universos diferentes e por vezes muito distantes, bem como uma atitude desconstrutiva, crítica e não dogmática – o que contribuirá para uma visão-acção pautada por uma maior justiça, equidade e capacidade interrogativa (pois em democracia também é fulcral fazer as perguntas certas).
A escritora norte-americana Will Allen Dromgoole, no seu icónico poema épico O construtor de pontes, fala de um velho que, numa dura viagem, após atravessar um vasto abismo por onde passa um rio, começa a construir uma ponte sobre o mesmo. Questionado por um peregrino sobre a razão de estar a desperdiçar a sua energia com aquele trabalho visto que já tinha ultrapassado esse obstáculo, que estaria certamente cansado com tamanho labor e que provavelmente nunca mais precisaria de passar por ali, o vetusto sábio responderia que estava a erigir a ponte para um jovem com quem se cruzara antes e que teria de passar por aquele mesmo lugar, o que lhe seria difícil e perigoso pela sua maior inexperiência.
Esta singela história é elucidativa sobre um dos principais desafios da democracia e, no fundo, da vida contemporânea em sociedade: a nossa disponibilidade para olhar à volta de um modo sensível, atento e solidário, para conseguirmos sair de nós, do nosso ego (perigosamente cada vez mais insuflado pela dimensão digital) – na obra A Divina Comédia, num diálogo já então Beatriz dizia a Dante: “Volta-te e escuta; não é só em meus olhos paraíso”. Mas também nos relembra a nossa inescapável responsabilidade perante o mundo em que nos foi dado viver, como uma “fiel dedicação à honra de estar vivo” (Jorge de Sena), e a importância da misericórdia – que provém do latim “misere” (ter compaixão) e “cordis” coração) em relação ao próximo, a quem vem a seguir, a quem não conhecemos, a quem ainda irá nascer. Esse compromisso humanizado que extravasa o eu é fulcral para criar a argamassa que sustenta e confere solidez à estrutura democrática.
É por isso que quanto mais se investir na activação cívica e institucional dos processos de mediação e na própria capacitação formal de indivíduos para essa profissão mais se estará a contribuir para dar menos espaço e poder aos que erigem muros para afastar e isolar, os quais também se tornam depois prisioneiros dos mesmos – como salientava lucidamente, em 2019, o falecido Papa Francisco após uma marcante viagem a Marrocos. E mais fôlego e energia haverá para disseminar as pontes, as possibilidades de atravessamento para a outra margem (ou para uma terceira margem, real ou simbólica) e os lugares de encontro, contraponto e partilha.
A mediação, no fundo, propõe um exercício premente de “higienização” para todos e com todos (mais ou menos letrados, com maior ou menor riqueza, com ou sem poder): uma (re)aprendizagem de como ver, falar e ouvir em democracia, de como fazer (auto-)crítica, de como cuidar, de como participar de modo activo, informado, sensato e filtrado. Isto numa sociedade altamente digitalizada e tecnologicamente evoluída, mas, paradoxalmente, ainda com lacunas graves no que toca à preservação do cerne de um sistema democrático desejavelmente menos imperfeito: a conversação entre os seus cidadãos e o respeito pela diversidade como arte respiratória maior.
Para que se preserve o alento, o desejo e o entusiasmo, para que, livremente, possa “existir-se à luz do dia”, para que a nossa vida, talvez só por isso, não seja em vão. Pois, na verdade, o mundo não é coisa nossa; foi-nos cedido, o que implica “caminhar com cuidado, como quem leva ao colo uma criança”, cautelosamente, como escreveu Jorge de Sena a 2 de Maio de 1974, após a revolução instauradora da democracia. Temos de “aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política”, e para isso precisamos do poder “invisível” e “inútil” da cultura, das artes, da mediação. Não há como fugir a isto.
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