O eléctrico da carreira 28 parou na Rua Vítor Cordon, à beira do Chiado, em Lisboa, e dali não conseguiu sair mais. Sem energia, ficou imobilizado. O “apagão geral” aconteceu pelas 11h30 da manhã. As comunicações falharam. As caixas Multibanco deixaram de funcionar. O metropolitano parou. E os eléctricos também. Carlos Vinagre, 49 anos, motorista da Carris, sabia que tinha de render o colega pelas 14h e a essa hora foi ter com ele à Vítor Cordon, sabendo já que o eléctrico estava parado no meio da rua até que alguma coisa acontecesse. “Depois, o meu colega foi-se embora e eu aqui fiquei.” Diz-nos isto às 22h, enquanto joga às cartas com um jovem chamado Vasco. Estão pacatamente sentados nos bancos do eléctrico, na penumbra.
Vasco mora ali perto e foi um dos muitos que ao longo do dia foram entrando no eléctrico para fazer companhia ao motorista Carlos Vinagre.
“Dois norte-americanos deixaram-me uma marmita, feijão com queijo feta e tomate cherry”, diz o motorista virando-se para um saco no banco de trás. “Está ali, não comi tudo, estive a dosear, não fosse ter de ficar aqui a noite toda”, explica, enquanto joga mais uma cartada à meia-luz.
Outros levaram-lhe água. “Tenho bolachas e tenho dois pães. E mais coisas que as pessoas me foram trazendo para o caso de ter de ficar aqui muito tempo.”
O motorista não perde o sentido de humor. De janelas abertas nesta noite quente espera pacientemente o reboque da Carris que, diz, deu prioridade ao reboque dos eléctricos novos que com o “apagão” pararam noutros locais mais movimentados. “Não sei quanto tempo mais vão levar a chegar aqui.” Encolhe os ombros. Está ali há oito horas.
“Não podemos abandonar o veículo sem chegar alguém da companhia. Faz parte das regras”, continua. “É uma questão de segurança.” E se for para ir à casa-de-banho? “Por enquanto, não precisei. Mas o porteiro aqui deste edifício disse-me que se eu quisesse podia lá ir, e outro senhor deste prédio também me deu autorização. Portanto, não há problema.”
Em 23 anos de trabalho na Carris, nunca tinha passado por nada assim, “com esta gravidade”. E enquanto diz isto, pouco depois de ter estado a ouvir pela rádio o primeiro-ministro explicar que ainda não se conhecem as causas do incidente, chega Susana, a mãe do Vasco, com outra jovem. “Já temos luz em casa, já temos Internet e agora viemos aqui outra vez, fazer companhia, mas já tínhamos estado aqui a jogar às cartas com ele.” E é o que vão continuar a fazer até que chegue o sono… ou o reboque.
A situação tem qualquer coisa de caricata num dia que foi tudo menos normal. Nas horas seguintes ao “apagão” hospitais accionaram gabinetes de crise, adiaram intervenções e consultas e mantiveram-se a funcionar à custa de geradores. Pais correram para ir buscar os filhos à escola e depois correram aos supermercados e esvaziaram prateleiras de água, enlatados, pão e papel higiénico. As filas para as bombas de gasolina foram engrossando. A confusão instalou-se no aeroporto de Lisboa.
Pelas 20h30, contudo, os semáforos despertaram, começaram a piscar, sinal de que alguma coisa boa estava a acontecer, e as luzes públicas acenderam-se e ouviram-se palmas nas ruas e buzinadelas de celebração: não era o fim do “apagão” mas a energia estava a voltar, ainda que gradualmente, à cidade.
Nas horas seguintes resistiram várias ilhas de escuridão. A Internet manteve-se intermitente. Houve cortes de algumas vias (o Túnel do Marquês fechou), um número inusitado de carros de polícia fizeram-se ver nas ruas. A segurança havia sido reforçada, anunciara horas antes a PSP.
Nalgumas partes da Avenida Fontes Pereira de Melo, a luz teimava em não aparecer. Já perto do Saldanha, Fátima Teixeira acabava de perder o autocarro. “Para mim, isto, só pode ter sido Putin. Ou o Trump”, dizia Fátima, que teve um dia de loucos.
Trabalha no 20.º andar de um dos prédios da avenida, “aquele ali em cima, onde se vê luz”, e subiu e desceu várias vezes os 20 andares.
Fátima Teixeira, na Fontes Pereira de Melo
Quando chegou a “casa dos patrões”, ao fim da manhã, já não havia energia. E depois começou a faltar a água. Desceu para ir comprar uns garrafões. “Mas os supermercados já estavam todos fechados.” Conseguiu abastecer-se numa mercearia. “E lá tive de subir com dois garrafões em cada mão. Os 20 andares, outra vez, porque, claro, não havia elevadores.”
Mais tarde, quando chegou a patroa “com a menina de dois anos”, desceu para ir buscá-la e subiu com a criança às cavalitas. Pelo meio foi uma correria para comprar velas e lanternas. “Fui a seis lojas chinesas, seis, e nada. Já tinha esgotado tudo.” Uma vizinha disse-lhe que talvez na papelaria. “E na papelaria ficámos com as duas últimas lanternas que havia. Isto foi uma loucura.”
Quando o dia de trabalho acabou, desceu os 20 andares para regressar a casa e quando chegou ao rés-do-chão… os elevadores voltaram finalmente a funcionar. Uma pontaria. Ri-se. Depois, perdeu o autocarro. Nesta segunda-feira, diz, só teve sorte numa coisa: quando saiu de casa para apanhar o metro, este tinha acabado de falhar e estava toda a gente a sair da estação. “Por cinco minutos, não entrei e fiquei lá presa.”
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