Nós, as mulheres, vivemos de penitência em penitência: culpamo-nos por ter comprado a mais, por ter comido a mais, por ter saído sem horas para voltar, por ter dormido sem despertador. Há sempre uma vozinha interior, nascida de um coro construído ao longo de séculos, que nos diz que não podíamos ou devíamos. Depois a mesma vozinha irritante, que somos nós em resultado desta sociedade castradora, diz-nos: amanhã será tudo diferente. E, dias depois, voltaremos a errar, sendo que o alegado erro não é falha alguma. É somente aquilo que achamos que os outros podem condenar em nós.
Eu também me penitencio, mas hoje muito menos. Os quarenta anos trouxeram-me outra segurança e, hoje, aos cinquenta e três, sem me dar conta de que já avancei tanto no calendário, rio muitas vezes em vez de chorar. Rio das minhas contradições e incongruências. Rio-me, em dias bons, de também eu garantir a mim mesma que não volto a deslizar. Mas afinal o que é um deslize?
Hoje, ria-me com uma amiga, enquanto confessávamos os excessos que cometemos, chamando até para a conversa a Bridget Jones que há em nós. Sim, ela está no meio de nós, a mulher com piada, desastrosa, ingénua, premeditadamente sedutora, a quem tudo pode correr mal. A que se afunda num pacote de qualquer coisa processada, embrulhada numa manta a ver séries e filmes em série. A relembrar deslizes em série. A pensar na série de coisas que ainda pode comer para dizimar o aborrecimento do fim-de-semana, mais um em que as coisas podiam ter corrido melhor. Muitas de nós são essa mulher: procurando na internet mais uma compra de que não precisamos, uma receita que nunca vamos fazer, um destino de férias, onde se calhar, a felicidade nos espera.
Somos essa mulher, quando temos a sorte de poder ser essa mulher, mesmo que a culpa pese sobre nós. O que há de errado nisto? Nada. Perdoem-me todos os estereótipos que este texto pode conter, mas nós, mesmo quando pensamos que não, encaixamos quase todos no mesmo molde. Não vejo nenhum homem a culpabilizar-se porque passou demasiadas horas a ver futebol ou na pândega com os amigos ou a não ajudar a mulher quando até podia. Os homens livraram-se da culpa desde que nasceram. E, apesar de terem passado tanto tempo dentro da barriga de uma mulher, facilmente ajudarão a engrossar esse coro que insiste em fazer-nos sentir desajustadas, culpadas, aquém de qualquer coisa mais. Não, os homens não têm culpa de tudo o que nos acontece, até porque normalmente são educados por nós, mulheres. Pensando melhor, fomos nós que os livrámos da culpa e, porque a culpa tem de ter sempre um rosto e uma voz, ficámos nós com ela.
Depois de mais um Dia da Mulher, em que umas assinalaram a falta de direitos que estão por conquistar e outras as conquistas já conseguidas, era bom fazermos todas o exercício de nos libertarmos da culpa, porque é da culpa que se alimenta o temor, a fraqueza, a imobilidade. A culpa, como o medo, paralisa. Quando me culpo estou a tentar impedir-me de continuar. E nós precisamos de continuar.
Nem culpa nem penitência. Compramos (dentro do privilégio em que muitas de nós podem viver), comemos, bebemos, rodopiamos, dormimos, mas não podemos ignorar que a humanidade continua em dívida connosco. Vivemos há demasiado tempo no silêncio e na resignação. No medo do julgamento. Saímos da esfera da dona de casa perfeita (todas tinham de o ser) para nos ser agora exigido um mosaico de qualificações que se multiplicam. Somos médicas, professoras, investigadoras, políticas, CEO´s, auxiliares disto e daquilo, rompemos a madrugada para limpar o rasto dos outros, somos muitas coisas fora de casa, mas somos também o pilar da nossa casa, a mãe de filhos ou a cuidadora de tantos, habituados a contarem connosco.
Livrem-se de qualquer culpa. Nunca gastaremos o saldo negativo da dívida que a humanidade tem para connosco.
O coração ainda bate.
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