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O esquecimento do Holocausto, de novo | Opinião

Num extraordinário livro de memórias publicado recentemente, o jornalista Daniel Finkelstein relata as vidas dos seus avós, resistentes dos campos de concentração Nazis e da Sibéria, que encontraram uma nova vida na Inglaterra do pós-guerra. O livro inscreve-se numa tradição intelectual renovada, na qual descendentes de sobreviventes do Holocausto recuperam vivências familiares e, com isso, cumprem o dever moral de memória da memória. Nesse sentido, Hitler, Stalin, Mum and Dad – A Family Memoir of Miraculous Survival​ não difere de outros exercícios memorialísticos que, através das singularidades de histórias familiares, resgatam o passado e ajudam a impedir que este se repita.

A história dos ascendentes de Finkelstein não se distingue da de muitas outras famílias da burguesia judaica de Leste. Uma parte oriunda de Berlim, outra de Lviv, sobreviventes miraculosos a Bergen-Belsen e ao Gulag, marcados pelo horror e pela fome — que era, então, uma das expressões mais dilacerantes do terror dos campos —, os Wiener e os Finkelstein oferecem-nos um retrato poderoso do que foi o judaísmo errante do século XX. O livro destaca-se claramente entre a sucessão de volumes do género publicados nos últimos anos e merece tradução em português — até porque Finkelstein é neto, pelo lado materno, de Alfred Wiener, judeu alemão determinante na sistematização de informação sobre o regime Nazi, e cuja ação foi instrumental para o esforço de guerra dos Aliados.

O centro de documentação Wiener, que ainda hoje existe em Londres, não se limitou a constituir-se como recurso crucial para as forças armadas norte-americanas e britânicas. Parte da prova produzida em Nuremberga assentou na recolha meticulosa feita por Wiener, que muito cedo compreendeu a ameaça Nazi. A história está descrita detalhadamente no livro, que, aliás, se inicia com uma afirmação do próprio: “Estou disposto a esquecer, desde que todos os outros se lembrem.”

Escrevo sobre este livro precisamente porque, a certo momento, Finkelstein reflete sobre o processo de esquecimento do genocídio de judeus, iniciado logo em 1945. Os sobreviventes dos campos, muitas vezes, preferiam não falar, e, para os demais, a consciência do sucedido era coletivamente ingerível. Subitamente, poucos compreendiam a necessidade de estudar ideologias racistas ou de fixar a memória dos crimes do Holocausto. Aliás, assim que a guerra terminou, Wiener — cujo trabalho fora financiado pelos governos norte-americanos e britânico — perdeu o essencial do seu apoio. No entanto, com financiamento privado, a biblioteca manteve-se viva e o seu mentor compreendeu que o seu propósito não deveria limitar-se à compreensão do antissemitismo, pois este não podia ser isolado das outras formas de intolerância, ódio e racismo.

Perdoem-me a longa digressão, mas, perante o que se passa em Gaza — um território marcado por um horror que recorda aquele que vitimou milhões de judeus nos campos de extermínio —, é inquietante pensar na manifestação de esquecimento destes atos. Como é possível que o Estado de Israel, erigido para resgatar o povo judeu do seu martírio histórico, seja capaz de infligir um terror absoluto ao povo martirizado da Palestina?

Ainda na década de 40, o filósofo judeu Theodor Adorno alertou que “é um ato de barbárie escrever poesia depois de Auschwitz”. Uma interpelação ética que expunha os limites da representação da realidade e a forma como até a cultura podia ignorar a profundidade da tragédia. Aproximamo-nos, de novo, do indizível — e do mesmo lugar onde a história se repete como tragédia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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