As datas não são coincidências no documentário Oceano com David Attenborough. A obra chegou às salas de cinema britânicas no dia 9 de Maio, data em que o naturalista britânico que dá nome ao filme completou 99 anos. Em Portugal, estreia-se no canal Disney+ dia 8 de Junho, coincidindo com o Dia Mundial do Oceano, e no National Geographic a 14 de Junho, logo após a Conferência do Oceano (UNOC3), que as Nações Unidas organizam de 9 a 13 de Junho na cidade francesa de Nice.
Repetimos: não são coincidências. Oceano foi concebido, desde o primeiro momento, para ir além da relevância cultural e estética. O documentário tem a ambição de influenciar líderes mundiais a adoptarem, com urgência, políticas sérias de conservação marinha. No caderno de encargos desta obra-manifesto há dois objectivos claros: encorajar mais países a ratificar o Tratado do Alto Mar e restringir a pesca de arrasto de fundo.
“Sabíamos que íamos lançar o filme nos 99 anos do David [Attemborough]. Esse foi sempre um número assustador para todos nós: chegámos lá e isso é maravilhoso. Mas o ponto forte da narrativa foi sempre o tempo de vida do David, porque há este arco que vai desde a infância, quando não sabíamos quase nada sobre o funcionamento do oceano, ao desenrolar da sua carreira, período em que passámos a saber imenso, mas também a destruí-lo mais do que em qualquer outra altura da história da humanidade”, explica ao Azul Keith Scholey, que co-realizou Oceano ao lado de Colin Butfield e Toby Nowlan.
Oceano estabelece um paralelo entre a vida de David Attenborough, divulgador incansável da natureza há 70 anos, e a relação ambivalente que os humanos desenvolveram com o mundo marinho. No intervalo de um século, descobrimos novas espécies, investigámos o leito de mares profundos e conseguimos detalhar ecossistemas marinhos que, antes, nem sequer sabíamos que existiam. No mesmo período, criámos modelos cada vez mais eficazes (e violentos) para recolher recursos da água salgada, poluímos os mares com plásticos e outros resíduos e, por fim, lançámos tanto carbono para a atmosfera que fizemos subir a temperatura, acidez e o nível médio do mar.
Um cardume em mar aberto perto do arquipélago dos Açores
Doug Anderson
O realizador Keith Scholey descreve essa linha temporal como forças contraditórias que competem no arco narrativo: conhecimento e destruição. O desfecho, contudo, não impele ao desespero: o “terceiro acto” do filme é sobre a possibilidade real de regeneração. A ciência mostra que a conservação marinha constitui uma boa aposta tanto para a natureza como para a pesca: favorece o aumento de pescado nas zonas à volta das reservas e protege a saúde dos ecossistemas. Todos saem a ganhar.
“Penso que Oceano é provavelmente diferente de muitos dos chamados filmes de história natural, pois tem uma narrativa muito forte. Por isso, voltámo-nos para esta espécie de estrutura clássica da longa-metragem: uma estrutura em três actos”, descreve Keith Scholey numa entrevista por videochamada, organizada no âmbito da divulgação da série.
Sendo um filme de mais de 80 minutos, a ser exibido no grande ecrã num tempo em que os conteúdos digitais têm 15 segundos e são consumidos em telemóveis, Oceano tenta também agarrar os espectadores pela força dos planos dentro e fora da água salgada.
“Sabíamos que as imagens tinham de ser surpreendentes”, conta Keith Scholey, que destaca o trabalho dos directores de fotografia, especialmente Doug Anderson. “Foi crucial tê-lo connosco porque ele tem um estilo de filmagem [subaquática] muito, muito único. Por isso, as imagens são poderosas”, refere o realizador.
A banda sonora original, assinada pelo compositor britânico Stephen Price – vencedor de um Óscar por Gravidade (2013) -, reforça o sentido épico da narrativa. “Já trabalhámos muito com ele, o Stephen tem uma visão muito clara de como tornar a banda sonora verdadeiramente cinematográfica”, qualifica o realizador. Scholey e Price trabalharam juntos em David Attenborough: A Life in Our Planet (Netflix, 2020), por exemplo.
Para Keith Scholey, é esse conjunto de apostas que confere robustez filme. “A história é forte, as imagens são fortes e o tipo de partitura é forte também – acho que isso dá ao filme a energia necessária para que as pessoas aguentem os 80 minutos”, conclui o realizador.
A destruição na pesca de arrasto
O documentário Oceano mostra pela primeira vez, segundo os realizadores, imagens subaquáticas da pesca de arrasto no fundo do mar. “É um evento comum que acontece em todas as costas do mundo e, no entanto, não há imagens dele. Por isso, este foi um desafio. Inicialmente, estávamos apenas à procura de imagens de arquivos, porque não nos queríamos envolver, mas não havia nada de qualidade”, conta Keith Scholey.
A pesca de arrasto utiliza redes enormes e pesadíssimas que são arrastadas pelo leito do oceano, levando consigo tudo o que encontram pela frente. De todos os recursos naturais içados, os navios aproveitam muitas vezes só uma espécie. “É difícil imaginar uma forma mais desperdiçadora de apanhar peixes”, afirma David Attenborough no filme.
Na entrevista ao Azul, Keith Scholey conta que primeira sequência corresponde a um arrastão na Turquia. “Fomos ajudados por cientistas de um grupo de conservação que estavam a estudar os efeitos do arrasto de fundo. Eles queriam que ajudássemos a montar o equipamento de filmagem, pelo que desenvolvemos suportes especializados para podermos colocar as câmaras subaquáticas”, explica o realizador.
Aos 99 anos, David Attenborough protagoniza mais um documentário de história natural – desta vez dedicado ao oceano
Conor McDonnell
Já nas imagens recolhidas no Reino Unido, Scholey e a equipa contaram com a ajuda do cientista Bryce Stewart e da Marine Biological Association no âmbito de um estudo sobre o impacto da pesca de arrasto. “Em resumo, foi sempre através da colaboração com investigadores que tentavam estudar o fenómeno que conseguimos o acesso às dragas”, esclarece Keith Scholey.
A capacidade destrutiva da pesca de arrasto é tal que os trilhos deixados pelos navios podem ser vistos do espaço. A violência com que as redes varrem o leito oceânico faz levantar sedimentos, libertando grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2), o principal gás com efeito de estufa. Isto quer dizer que além dos custos ambientais e sociais, esta prática pesqueira também agrava a crise climática.
As comunidades piscatórias tradicionais, que dependem dos recursos marinhos como meio de subsistência, têm sido afectadas por este modelo industrial que, frisa David Attenborough, é surpreendentemente “subsidiado por muitos governos”. “Isto é o colonialismo moderno no mar”, conclui o naturalista britânico no documentário.
Banir a pesca de arrasto pode parecer algo tão impossível como proibir a caça comercial à baleia, moratória que acabou por ser aprovada em 1982. “Há 50 anos, as baleias estavam à beira da extinção em todo o mundo. Nessa altura, as pessoas mobilizaram-se e, agora, há mais baleias juntas no mar do que qualquer ser humano já viu antes. Se agirmos juntos, podemos resolver esses problemas”, garante David Attenborough.
Proteger 30% do mar até 2030
O “terceiro acto” de Oceano, para usar a expressão de Keith Scholey, desconstrói a ideia de que a conservação e a pesca são interesses mutuamente excludentes. E faz um apelo à protecção dos ecossistemas marinhos mostrando que, num planeta em crise, os objectivos de quem pesca e de quem conserva são os mesmos: “mais peixes, maior abundância e um oceano saudável”, refere David Attenborough no documentário.
“A razão de ser do filme é a Conferência das Nações Unidas [em Nice]. A nossa preocupação inicial (minha, do David e da equipa) era que a Conferência das Nações Unidas pudesse passar despercebida, uma vez que muitos dos protagonistas querem manter as coisas no oceano como estão. O objectivo do documentário é, antes de mais, expor o que está a acontecer. A segunda coisa realmente importante é dizer que a meta 30×30 é do interesse da população mundial”, afirma Keith Scholey.
O cinegrafista Toby Strong filma tartarugas-verdes da subpopulação havaiana no atol Midway
Toby Nowlan/DR
A meta 30×30, acordada em 2022 durante a Conferência da Biodiversidade, estabelece que 30% do oceano e da terra devem estar protegidos até 2030. O Tratado do Alto Mar funciona como um instrumento essencial para alcançar esse objectivo, uma vez que oferece uma estrutura legal para a criação de áreas marinhas protegidas em águas internacionais. Até agora, apenas 29 países ratificaram o tratado (incluindo Portugal), sendo necessário que 60 o façam para que o documento entre em vigor.
A meta 30×30 foi definida segundo critérios científicos por investigadores como o oceanógrafo Callum Roberts, que também foi um dos consultores científicos para o livro Oceano – o último reduto selvagem, de David Attenborough e Colin Butfield (ed. Temas e Debates). Quando se define uma área protegida, as populações de animais marinhos têm oportunidade de recuperar. Aos poucos, as espécies espalham-se para regiões fora da reserva, o que acaba por beneficiar o sector da pesca.
“Esta é a beleza da conservação, tal como eu a vejo: no oceano, ninguém sai a perder. Talvez alguém possa perder durante um curto período de tempo, quando se cria uma reserva, mas assim que a reserva começa a produzir mais e mais peixe, garantindo maior produtividade, toda a gente ganha. É esta a mensagem do filme que realmente queremos que chegue aos líderes mundiais”, ambiciona o realizador de Oceano.
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