A pesca com braços esticados, a pesca com olho na linha costeira e tacto no mar: uns minutos na embarcação de Leonardo Rebelo e um jogo tridimensional apresenta-se, mesmo se o pescador está apenas a fazer uma demonstração para jornalistas, mesmo se a linha não tem o isco que usa normalmente na sua arte.
Mas há cerca de 20 anos que o pescador vai para o mar fazer pesca tradicional, desde a sua adolescência, e a profissão está viva no seu corpo. Ela revela-se com os seus saberes e as suas técnicas, como usar o comprimento dos braços para medir o tamanho da linha, ou definir pontos ao longo da costa para saber situar a sua embarcação, no meio do mar dos Açores.
“Aqui em Rabo de Peixe toda a criança da minha geração queria sempre ser pescador”, diz o profissional ao Azul momentos antes, no porto daquela povoação, numa das comunidades pesqueiras mais importantes da ilha de São Miguel. Há vários barcos encostados às docas e alguns pescadores de terra a trabalharem as linhas que irão de volta para o mar.
No entanto, 20 anos foram suficientes para Leonardo Rebelo ver os peixes diminuírem no oceano e o recuo do movimento à sua volta. “O futuro, eu não vejo com bons olhos. Aqui, principalmente na nossa costa, o peixe está escasso e a geração nova está deixando de andar no mar”, refere, explicando que há uns anos não se veriam barcos àquela hora da manhã no porto, porque estariam todos na pesca.
Tiago Bernardo Lopes e Joana Gonçalves
A diminuição da quantidade e do tamanho das espécies de peixes, descrita por várias pessoas com que o Azul falou durante uma estadia de três dias em São Miguel, é um dos grandes argumentos para o estabelecimento da Rede de Áreas Marinhas Protegidas dos Açores (RAMPA), aprovada a nível regional em 2024, que tem vários objectivos de conservação. Este parque marinho definiu a protecção de 30% do mar dos Açores, que tem ao todo uma área de cerca de um milhão de quilómetros quadrados no meio do oceano Atlântico Norte – cerca de 11 vezes Portugal, ou duas vezes Espanha.
Daqueles 30%, metade serão áreas marinhas de protecção total e outra metade áreas marinhas de protecção alta, onde se pode realizar alguns tipos de artes de pesca mais sustentáveis, como a pesca de salto e vara, usada para capturar o atum, a pesca submarina e o palangre de superfície.
A percentagem de 30% é o valor que ambientalistas, a União Europeia e a Organização das Nações Unidas (ONU) querem ouvir, já que é o objectivo de conservação que a ONU definiu para 2030 para a protecção dos ecossistemas do planeta, tanto em terra, como em mar. Por isso, não será de estranhar que a rede está a ser olhada como um exemplo a nível internacional, principalmente num momento em que se realiza a Conferência do Oceano das Nações Unidas, que começa esta segunda-feira e se prolonga até sexta-feira, em Nice, França.
Ilhéu de Vila Franca do Campo visto ao longe
Tiago Bernardo Lopes
Menos pescadores
Nos Açores, sectores de actividades como o mergulho e outras empresas marítimo-turísticas, cujos profissionais estão preocupados com a conservação da biodiversidade e dependem dela para venderem um produto, vêem com muitos bons olhos o plano da RAMPA, cujo processo iniciado no fim da década passada está a ser conduzido pelo Governo Regional. Mas os resultados não são unânimes.
“Sou a favor [da rede]. É muito bom para preservar os nossos mares, mas também existem muitas pessoas que dependem daquelas áreas marinhas, dependem da embarcação ir para lá e apanhar o peixe”, diz Leonardo Rebelo, repetindo a preocupação dos vários pescadores que o Azul ouviu, principalmente em relação às áreas que estarão excluídas da pesca. Mas o facto é que, independentemente da nova rede, já existe um mal-estar patente.
Leonardo Rebelo, pescador
Tiago Bernardo Lopes
“Cada vez há menos pescadores. Antes, uma embarcação como a minha, de nove metros, levava sete, oito pescadores. Hoje, o proprietário anda atrás das pessoas para poder ir para o mar, e arranja, uma, duas, três”, conta. Leonardo Rebelo fala de amigos que vão sozinhos pescar, correndo o risco de sofrerem algum acidente e não terem ajuda, e que passam horas à espera do peixe, sem ninguém para conversar. É “perigoso”, descreve.
Mas de há poucos meses para cá, o nativo de Rabo de Peixe resolveu apostar na pesca turismo, em paralelo à pesca comercial que continua a fazer. Por isso, abriu uma empresa chamada Azores Traditional Fishing e leva turistas a dar passeios na sua embarcação para verem e viverem a arte da pesca tradicional.
“Vamos para o mar, mostro as nossas artes de pesca, explico a nossa cultura, a nossa terra, o que é que fazemos, perguntam muitas coisas”, diz, contando que tem feito cerca de duas viagens por semana com americanos, noruegueses, ucranianos… Na página de Facebook da empresa, vêem-se fotografias com turistas a segurarem lulas, há um enorme atum-rabilho e outros peixes. O pescador gosta da interacção com os turistas. “Estou representando a minha terra, os meus valores, a gente tem muita coisa boa aqui que não é aproveitada”, afirma.
Tiago Bernardo Lopes e Joana Gonçalves
Mar pelos calcanhares
O salto que Leonardo está a dar é de alguém que está a abrir caminho, observa Rui Vieira Tavares, sociólogo de Rabo de Peixe, que faz parte do Grupo de Acção Local Costeiro e tem várias actividades para ajudar o desenvolvimento daquela comunidade. “A pesca turismo é uma actividade que pode ser sazonal, mas sobretudo é uma actividade complementar, que vai permitir a continuidade de ligação ao mar, mas extraindo muito menos recursos”, diz ao Azul, numa conversa que decorre junto da praia de Santana, um local “magnífico” em Rabo de Peixe que o sociólogo quis mostrar e que tem uma água azul tentadora.
Rui Vieira Tavares integrou parte das dezenas de sessões que foram sendo feitas durante o desenvolvimento da RAMPA, ajudando como mediador. O processo foi organizado pelo Programa Blue Azores, apoiado pelo Governo Regional, a Fundação Oceano Azul e o Instituto Waitt. Nesta primeira fase, que deverá ficar concluída este ano, o projecto concentrou-se na região offshore, das seis às 200 milhas náuticas. Neste momento, está a decorrer um processo semelhante para as zonas costeiras até às seis milhas, mas já lá vamos.
As discussões — que reuniram 17 entidades da esfera oceânica — tiveram por base mapas que, a partir do conhecimento científico existente na altura, identificaram áreas de interesse de conservação, mediante vários objectivos definidos. Depois, os utilizadores do mar alto, desde o sector da pesca, passando pelas empresas marítimo-turísticas, até associações ambientalistas como a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), tiveram a oportunidade de desenhar e co-criar a sua rede de eleição, numa primeira fase.
Depois, foi havendo discussões levadas a cabo pelos representantes dos sectores até se tentar chegar a um consenso. Quando não houve consenso, a decisão coube ao poder político que fez as escolhas resultantes nas 23 áreas mapeadas.
“A RAMPA tem que ser encarada quase como uma maternidade de peixes. É ali que vão nascer os futuros peixes que os pescadores irão apanhar no mar”, argumenta Rui Vieira Tavares, que elogia o processo e defende que esta é uma oportunidade para uma mudança na forma como os Açores encaram o oceano. Embora um dos aspectos mais marcantes da paisagem de São Miguel seja, precisamente, a presença constante de uma fronteira entre terra e água, formada muitas vezes por falésias e declives dramáticos, o convívio das comunidades com o mar pode evoluir.
Casas em Rabo de Peixe
Tiago Bernardo Lopes
“Na generalidade, os açorianos vivem e sempre viveram de costas viradas para o mar — as casas eram construídas junto à orla costeira e os quintais [davam] para o mar”, descreve o sociólogo, apontando que as comunidades piscatórias eram as únicas que mantinham uma relação com o oceano, essencialmente extractiva. “Somos um povo ilhéu, mas há muita gente que não sabe nadar”, exemplifica, adiantando que, se calhar, o primeiro passo para se estreitar essa relação e aumentar a literacia do oceano seria ensinar as pessoas a nadar.
O desejo de Rui Vieira Tavares é transformar esta dinâmica, rebentar as várias bolhas que existem na ilha, como a da comunidade piscatória de Rabo de Peixe. “O que eu gostava é que as pessoas deixassem de ter o mar pelos calcanhares e passassem a ter pelas pontas dos pés”, ou seja, de frente, diz. “E isso é uma viragem de uma abertura de mente diferente, quer pelo respeito, quer pela não-poluição.”
Peixe que é ganha pão
Até porque o mar já entra diariamente na ilha, veja-se a bancada da peixaria de Joana Vieira: o lírio, a bicuda, a veja, o encharéu, o bodião, a abrótea, o pargo, o peixe-rei, o cantaril, o peixão, o alfonsim, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, o besugo, a abrótea, a cavala, a moreia, o atum e o chicharro (ou carapau) são representantes de um mundo que está, na maior parte das vezes, escondido.
A Peixaria Vieira fica em Ribeira Grande, cidade a poucos minutos de Rabo de Peixe. “O meu pai incentivou-me na época da covid a abrir uma peixaria”, diz Joana Vieira, de 37 anos, ao início da manhã, com uma boa disposição de quem gosta de conversar com as pessoas e com a vida, de quem tem entusiasmo.
Joana Vieira na Peixaria Vieira
Tiago Bernardo Lopes
A peixeira acorda às 6h30 para se dirigir à Lotaçor, em Ponta Delgada, do lado Sul de São Miguel (e a cerca de 20 minutos de carro). A essa hora o pai de Joana já lá está, competindo com outros comerciantes pelo peixe que chegou à lota de madrugada, trazido pelos pescadores. Quando chega à lota, vai analisando o pescado que o pai arrematou e, se for de qualidade, compra-o e traz para a peixaria, onde vende aos clientes, mas também leva encomendas para privados, restaurantes e hotéis, percorrendo várias povoações.
Joana Vieira está consciente da equação entre cuidar dos oceanos e o sucesso do sector económico onde se insere, e está preocupada com a diminuição dos stocks de peixe. “Não havendo peixes, não podemos vender, não podemos negociar, como o próprio pescador também não pode ir à pesca”, diz. “A gente também se preocupa com eles, porque dedicam a vida ao mar. Aquilo é o ganha-pão deles.”
Mas a peixeira aprova a RAMPA. “Eu concordo com a gente ter as nossas áreas marinhas protegidas, porque é bom para nós, para o turismo, para o nosso oceano”, refere, relatando a experiência que foi mergulhar no ilhéu de Vila Franca do Campo, na costa Sul de São Miguel, uma área marinha costeira protegida onde é proibido pescar. “Por acaso vi um bodião, eu costumo ter o castanho [na peixaria] e vi bodião azul. Achei uma coisa impressionante, fora do normal”, recorda.
Tiago Bernardo Lopes e Joana Gonçalves
O caso do atum
O dia anterior à conversa com Joana Vieira tinha começado na Lotaçor, onde Luís Rodrigues, assessor da administração da lota e apaixonado pelas pescas, vai mostrando, com energia, a actividade diária. Seis toneladas de atum pescadas pela embarcação do mestre José Eduardo entram no edifício e vão sendo distribuídas, com método, num salão. Depois, cada peixe entrará num tapete rolante, na sala onde os comerciantes arrematam os peixes.
José Eduardo explica ao Azul que vinha de uma travessia de pesca de dois dias e meio à ilha de Santa Maria. Lá dedicou-se à pesca de salto e vara do atum, uma actividade que é vista como sustentável em que um homem, com um anzol, pesca um peixe de cada vez — com a ajuda dos muitos iscos vivos, outros peixes, lançados ao mar para atrair os atuns à superfície.
O atum tem sido uma fonte de polémica recente. Os pescadores que se dedicam à pesca deste peixe defendem que os atuns deveriam poder ser pescados nas áreas de protecção total, uma vez que aqueles peixes migratórios estão apenas de passagem nas áreas dos montes submarinos e a sua pesca não influencia a protecção da zona.
Tiago Bernardo Lopes
Nesse sentido, o PS dos Açores pediu em Março uma alteração à legislação que criou a Rede de Áreas Marinhas Protegidas dos Açores (RAMPA) para facilitar a pesca do atum. Uma tentativa de mudança que, claro, está a ser muito criticada.
“Este assunto já foi discutido e votado pelo menos três vezes” a nível da Assembleia Regional, diz ao Azul Luís Bernardo Brito e Abreu, coordenador do Blue Azores e assessor do presidente do Governo Regional, o social-democrata José Manuel Bolieiro. O coordenador recorda que este pedido de alteração já foi chumbado das outras vezes que o PS tentou fazê-lo e diz que o pedido actual vai continuar o seu processo democrático.
“Mas é grave. Se isto for aprovado, vamos ter uma rede de áreas marinhas que é um descrédito para todo o trabalho que foi feito até agora”, afirma o responsável, lembrando que a rede foi feita a partir dos critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), garantindo assim que possa ser contabilizada para os objectivos de protecção de 30% dos ecossistemas até 2030 e para os 10% de protecção estrita.
“Portugal deixou de ter 4,5 % de mar protegido e passou a ter 19,1 % a nível nacional, só com a rede dos Açores”, recorda. Se algo mudar, isso “põem em causa os objectivos nacionais”.
Tiago Bernardo Lopes e Joana Gonçalves
Ecossistemas sensíveis
Mas na lota, José Eduardo discorda da forma como a RAMPA está a ser implementada. “As áreas marinhas são boas para os pescadores, só que estão mal implementadas, falam em fechar uma parte dos bancos, mas são onde a gente apanha mais peixes. Ao fecharem uns, vão sobrecarregar outros”, diz ao Azul, argumentando que a falta de peixe se resolvia se certas artes de pesca, com maiores impactos, fossem banidas. “Os palangres de fundo, as redes de emalhar, os cercadores, se essas artes deixassem de existir, havia peixe a vida toda”, refere, enquanto os atuns continuam a sair da sua embarcação.
O pescador exemplifica o problema com os montes submarinos como o Princesa Alice, o Cachalote, o Voador e o Gigante, que definem quatro das reservas marinhas integradas na RAMPA e ficam a sudeste das Flores, ou a oeste/sudoeste do Faial. De acordo com a definição actual da rede, será proibido a pesca nas primeiras duas, mas nas outras poderá haver a pesca mais sustentável.
Luís Rodrigues explica o balanço delicado em que se encontra os Açores. Os pescadores pescam “em cima de montes vulcânicos, que a meio do oceano nascem”, diz, recordando que estes acidentes fazem parte da Dorsal Médio Atlântica, a enorme cordilheira que atravessa o Atlântico, de Norte a Sul. Nove daqueles vulcões ultrapassaram a superfície e originaram o arquipélago dos Açores. “Cada um destes montes vulcânicos, a maior parte submerso, é um hotspot de vida, é uma fonte de riqueza, mas de diversidade, não de quantidade.”
Luís Rodrigues, assessor da administração da Lotaçor
Tiago Bernardo Lopes
“Os nossos ecossistemas são super-sensíveis, são muito frágeis”, diz Luís Rodrigues, que foi director-regional das Pescas durante o último Governo regional do PS (2016-2020), e foi estando envolvido com o desenvolvimento da RAMPA. “As áreas marinhas protegidas, podem ser a solução para conseguir preservar este paraíso a meio do oceano Atlântico.”
A pesca faz-se principalmente em cima dos montes submarinos. Mas tal como foi observado em outras áreas marinhas protegidas no mundo, espera-se que as novas reservas nos Açores permitam, com o tempo, o aumento da quantidade de peixes, da sua biomassa, e um transbordar desta riqueza para o espaço em redor, onde os animais já podem ser pescados.
Enquanto isso, o projecto da RAMPA está a contar com subsídios do Fundo Ambiental para ajudar os pescadores a uma transição (pode até haver a necessidade de abate de barcos) e outros fundos europeus para o sector se tornar mais competitivo e lucrativo, com um valor maior por animal pescado. No entanto, os pescadores com que o Azul falou dizem que não foram consultados sobre o processo e não confiam na informação que lhes chega acerca destes subsídios, preferindo antes garantir que continuam a ter trabalho.
Tiago Bernardo Lopes
As associações de pescadores “tinham informação suficiente [sobre a RAMPA] para transmitir aos seus associados”, garante ao Azul Jorge Gonçalves, presidente da Federação das Pescas dos Açores, uma das instituições que participaram nas discussões da RAMPA. O responsável, armador há 40 anos no Faial, defende que o sector é a favor da existência de áreas marinhas protegidas, mas pede diálogo e a necessidade de uma restruturação das actividades, a começar pela redução do esforço de pesca.
“Não é aceitável, por exemplo, vender-se o atum a dois euros o quilo, como aconteceu hoje [na lota]. Não se pode criar incentivos a alguém para vir para a pesca com uma situação destas”, refere, numa conversa ainda na lota, onde aponta a dificuldade que está a haver para renovar o sector com jovens.
Nesse ponto, Luís Rodrigues, que passou muito tempo em contacto com as comunidades piscatórias dos Açores, reforça a necessidades dos incentivos “Não faz sentido investir em medidas restritivas se não houver um investimento em conformidade nas pessoas”, afirma.
Sétima geração
Além da vida piscícola que ocorre nos bancos submarinos, no mar profundo há desde fontes hidrotermais até florestas de corais que só agora estão a ser investigados pela ciência.
“As florestas fornecem habitat. São importantes para a reprodução de várias espécies, algumas de valor comercial. Algumas destas espécies que formam estes jardins ou recifes de corais são sequestradoras de carbono, pensa-se que têm um papel importante na regulação do clima”, diz ao Azul, por telefone, Telmo Morato, biólogo marinho que lidera com Marina Carreiro Silva o grupo de Investigação do Mar Profundo dos Açores, do Instituto de Investigação Okeanos, da Universidade dos Açores, no Faial.
Praia da Caloura
Tiago Bernardo Lopes
Telmo Morato e outros investigadores assinaram o Blue Paper, um artigo de 2020 sobre a biodiversidade no fundo do mar dos Açores que serviu de base científica para o mapeamento da RAMPA. Nos últimos anos, a equipa tem andado a investigar os ecossistemas e as espécies que encontra no fundo do mar dos Açores, a uma profundidade entre os 200 e os 1000 metros.
“Algumas dessas espécies de corais, não todas, têm um crescimento muito lento e são dos organismos vivos mais antigos do planeta Terra”, explicou. Esses organismos podem chegar aos 3000 anos de idade.
Actividades como a pesca de arrasto, a mineração em mar profundo e fenómenos como as alterações climáticas põem em risco aqueles ecossistemas. “Se não conseguimos identificar onde é que estão os refúgios climáticos e, por um azar qualquer, destruirmos as comunidades bentónicas [do fundo do mar] desses refúgios, então perdemos toda a possibilidade de voltar a observar estas comunidades daqui a 50, 100, 200 anos”, diz o investigador, explicando a necessidade de integrar o novo conhecimento científico que vai sendo produzido no pensamento da RAMPA.
A ideia do tempo é uma preocupação também para Bruno Sérgio, biólogo marinho que está há 27 anos nos Açores e um dos donos da empresa Best Spot, um centro de mergulho sediado na marina Pêro de Teive, em Ponta Delgada. “Antes ia para estas zonas offshore e via atuns, tubarões de várias espécies, meros a torto e a direito, lírios, barracudas. Hoje, vamos lá e não vemos metade disso, nem 10%”, conta ao Azul, explicando a necessidade de haver um pensamento do impacto que se tem “até à sétima geração”, como ocorre em certos povos indígenas.
“Não podemos olhar só para o factor económico e o factor social. Temos que olhar realmente para o factor ecológico, porque sem ele não há pesca, não há turismo, não há nada”, diz. “O alerta tem sido dado por diversos cientistas em todo o mundo. Se nós não protegemos o mar, e rápido, vamos pagar a conta com uma factura bem alta.”
Bruno Sérgio explica como se deu a discussão da RAMPA ao nível do sector. Primeiro, houve um processo participativo online onde os integrantes do sector definiram “as zonas importantes para uso”, ou seja, as áreas que deveriam ser protegidas. Depois, foi a Associação de Operadores de Mergulho dos Açores que esteve nas reuniões a representar o sector. O que pediram para definir? “A criação de reservas marinha, sem dúvida. Porque sabemos perfeitamente como as coisas progrediram ao longo dos últimos anos, o que perdemos” responde.
O biólogo marinho defende a necessidade de deixar zonas intocáveis, sem pesca, para permitir que os animais voltem a crescer. Dessa forma, é possível “sustentar o valor ecológico, mas também o valor económico” da região, diz. “Se não, corremos o sério risco de, daqui a uns anos, estarmos a subsidiar as actividades extractivas”, avisa.
Bruno Sérgio, biólogo marinho e um dos donos da Best Spot, um centro de mergulho em Ponta Delgada
Tiago Bernardo Lopes
Passar à prática
O processo para integrar as zonas costeiras na RAMPA também está a passar pelo mapeamento da biodiversidade e dos ecossistemas à volta das nove ilhas, conjugando essa informação com o uso que as várias comunidades fazem, o que torna este processo bastante mais complexo. Mas não deixa de ser importante.
“Sabemos que as zonas costeiras são zonas de berçário e de reprodução de muitas espécies e são muito importantes para haver uma harmonização [com a rede na zona offshore] e garantir alguma coerência espacial”, explica Adriano Quintela, geógrafo especializado em gestão integrada de zonas costeiras, do Blue Azores. O especialista está envolvido nas discussões da RAMPA e defende o carácter aberto e abrangente como elas estão a decorrer.
“Temos que considerar as áreas marinhas protegidas não como um custo, mas como um investimento”, diz ao Azul, numa paragem perto da povoação de Caloura, à tarde, para mostrar uma perspectiva única de uma área marinha costeira com diversos graus de protecção que vai dali até Vila Franca do Campo, que se observa, ao fundo, com o seu ilhéu.
Tiago Bernardo Lopes e Joana Gonçalves
É ali o destino final da viagem. Em Vila Franca do Campo, o ponto de encontro é na marina, onde Azucena de la Cruz, coordenadora da SPEA Açores, explica que há várias espécies de aves marinhas que passam a maior parte da vida no mar, como a cagarra, a alma-negra, o painho, entre outras. Por isso, elas são boas sinalizadoras de áreas ricas em biodiversidade marinha, do qual se alimentam.
A SPEA foi a única associação de cariz ambiental a fazer uma proposta de mapeamento das áreas que deveriam ser protegidas, dando prioridade às aves. O mapa final foi, como sempre, uma concessão perante os interesses dos vários sectores. Mas a ambientalista considera que o importante é dar o primeiro passo.
“É importante passarmos à prática”, explica ao Azul. Ou seja, passar à implementação da rede, que ocorrerá com a divulgação, a monitorização e a fiscalização das práticas, um factor muito importante para dissuadir a pesca em zonas protegidas, por exemplo. “Uma vez que passemos para a prática, vai ser possível também avaliar os impactos e os resultados que estas áreas marinhas estão a ter e até um processo adaptativo para conciliar os vários interesses”, espera.
Desígnio nacional
Depois, é vez de saltar para um barco semi-rígido da Terra Azul, uma empresa marítimo-turística que faz viagens de observação de cetáceos há mais de 20 anos. Inês Mota, bióloga, vai explicando ao grupo de turistas as espécies de cetáceos, como o golfinho-comum ou cachalotes, que podem ser observados nos mares dos Açores. Ao longo do ano, 24 das 90 espécies de cetáceos do mundo passam ou vivem ali.
Passeio num barco da Terrazul para ver golfinhos e o Ilhéu de Vila Franca do Campo
Tiago Bernardo Lopes
É preciso pôr os coletes e saltar para a embarcação numa certa ordem. Depois, o barco começa a trabalhar e sai da marina, acelerando por uma ondulação permanente que por vezes molha o semi-rígido e surpreende o turista incauto. A embarcação sabe para onde se dirigir graças aos vigias em terra, que observam o mar à procura de cetáceos, tal como antes se fazia com a caça à baleia. É um método idêntico mas com um objectivo completamente diferente.
“Qual é o real valor de um cachalote, é vivo ou morto?”, questionará depois Miguel Cravinho, sócio-gerente da Terra Azul, numa conversa já em terra. “Na altura da caça à baleia era a quantidade de óleo que produzia e o valor comercial com que se vendia esse óleo, esgotava-se aqui o valor do animal. Quando falamos de ecoturismo, o cachalote ganha o valor não só naquilo que é o seu contributo para a biodiversidade, mas também enquanto recurso natural, que permite uma actividade económica baseada na sua observação, que não se esgota no momento.”
Nesse dia não houve cachalotes, a surpresa veio de um grupo de dezenas de golfinhos-comuns e golfinhos-riscados que foram surgindo a algumas milhas de distância — a costa de São Miguel ao longe, sempre presente, como um facto, um bastião. Ao redor da embarcação, profundidade, escuridão e transparência, tudo ao mesmo tempo, com golfinhos a deslizar abaixo da superfície, perto, longe, em várias direcções, simultaneamente. De repente, saltos: um, dois, quatro golfinhos de uma vez, lado a lado.
São vários minutos de agitação e espanto, em que o oceano se enche de tridimensionalidade, torna-se vivo.
Miguel Cravinho é um forte defensor das áreas marinhas protegidas, vendo nelas um desígnio nacional, recordando que os Açores, e também a Madeira, aumentam a importância de Portugal ao ampliarem o seu cariz atlântico: “É nossa obrigação olhar para o mar numa perspectiva da sua conservação. Porque ao fazê-lo também estamos a exercer a soberania que o país está obrigado a ter pela sua constituição, pela sua história, pela sua dimensão temporal. Espero bem que consigamos estar à altura deste desafio.”
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