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Pecado original | Crónica | PÚBLICO

Dizia George Orwell no seu famoso romance 1984 que “a linguagem é a base do pensamento. Se não há palavras para expressá-lo, o pensamento desaparece”. A ideia é acutilante; quão diferente pensaríamos se tivéssemos nascido noutra geografia, com uma língua e cultura completamente diferentes, ou noutro tempo, com outros verbos, outro vocabulário?

Os arquitectos de hoje — eu incluído — nasceram com um pecado original que, por mais que se tente fugir, condiciona a prática profissional de modo incontornável: a atracção por uma arquitectura tendencialmente minimalista. Não no sentido ortodoxo do movimento minimalista, mas num sentido lato de contenção visual de elementos decorativos, construtivos ou componentes técnicos, sintetizado na famosa expressão de Mies van der Rohe: “Menos é mais.”

Este “menos” — que nasce no movimento Moderno — responde aos excessos dos vários revivalismos românticos e neoclássicos, que por sua vez sucedem ao rococó, que surge após o barroco. Um crescendo insaciável de “mais é mais” até que se atingiu o ponto de saturação e se deu uma revolução, nasceu uma nova arquitectura. Compreensível, a arquitectura precisava de “menos” e hoje todos nos sentimos em casa dentro deste léxico.

Por outro lado, a evolução da sociedade, da tecnologia e das ambições seguiu em sentido contrário. Mais nunca pareceu de mais. Maior segurança contra incêndio, melhor comportamento anti-sísmico, mais conforto térmico e acústico, mais telecomunicações, mais eficiência energética, mais ecologia.

Então, além das lutas contra colunas, frisos, rodapés ou lambrins, somaram-se lutas contra tomadas eléctricas, tomadas de cabo coaxial, par de cobre ou fibra óptica; lutas contra detectores de fumo, detectores de movimento, extintores, câmaras de videovigilância e dispositivos de ventilação, além da iluminação e sinalética de emergência.

Pelo caminho, deixámos de nos proteger da chuva com telhados inclinados e beirados para convidar as águas para dentro da construção com coberturas planas invertidas que assentam na tecnologia e garantia dos sistemas de impermeabilização. A aversão a frisos e guarnições de remate levou à preferência por materiais plásticos contínuos, sem juntas, que por sua vez funcionam como potentes “panos de fundo” para tudo o que acontece em primeiro plano. Neste contexto tudo ganha destaque: tanto uma elegante peça de mobiliário como uma grelha de ar condicionado.




Andrea Pucci/GettyImages

Hoje como nunca há uma necessidade imprevisível de infra-estrutura. Um aparelho ou tecnologia que necessita de um determinado cabo que em fase de projecto não era expectável. Donde, uma nova calha ou puxada ganha um protagonismo inaudito sobre as lisas paredes, para nossa tristeza e desconforto visual. Já qualquer igreja barroca acomoda a cablagem dos posteriores sistemas de áudio e iluminação de modo praticamente imperceptível, encaixados numa das inúmeras linhas de sombra de uma qualquer cornija ou pilastra.

Temos então este paradoxo: a arquitectura de há 200 anos parece resistir de modo mais feliz a qualquer necessidade de adaptação que um edifício dos nossos dias. Mais parece que o grande anseio da linguagem do nosso tempo é o retorno a uma arquitectura com os requisitos técnico-funcionais de uma anta — essa, sim, verdadeiramente minimalista.

Como sair então desta armadilha? Em teoria, nada do que projectamos faz sentido, na prática, por mais que nos custe admitir, sabe-nos bem. Esta é a linguagem materna que aprendemos, é nesta que conseguimos falar e qualquer outra nos parece estranha.

Decerto que a solução não passará pelo regresso aos pastiches do passado, mas é natural pensar que o actual léxico arquitectónico terá de se transformar e fazer as pazes com a componente técnica e construtiva, sem abdicar da intemporal busca pelo belo. Só assim a transformação será profunda e não apenas um limpa-palato de prazo de validade curto. Provavelmente não será nesta geração, nem na próxima. Alguém conseguirá imaginar esse futuro?


Arquitecto

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