A zona onde se situa a primeira reserva natural classificada em Portugal, no Algarve, era há 50 anos usada para depositar lixo, mas hoje serve de habitat a 200 espécies de aves, entre as quais os flamingos (Phoenicopterus roseus).
A Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, no distrito de Faro, junto à foz do rio Guadiana, foi criada no papel em Março de 1975, mas só em 1988 é que entraram em funções os primeiros vigilantes da natureza.
Um deles era Paulo Monteiro − ainda hoje vigilante naquela área protegida, agora sob a égide do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) −, que conta como a reserva foi criada para impedir o avanço de uma lixeira.
Segundo o responsável, a criação da reserva acabaria por contribuir para travar a deposição de resíduos naquela área natural, numa época em que havia pouca consciência ambiental, inclusivamente por parte das autarquias.
“Hoje também as autarquias olham para a conservação da natureza [de forma] completamente diferente. Agora temos autarcas que vêem a conservação da natureza como uma mais-valia, como um valor acrescentado. E isso é claro que tem importância na valorização da área protegida”, considera Paulo Monteiro.
Salinas de Castro Marim
Margarida Basto/arquivo
Caça e exploração de sal
Contudo, até chegar ao que é hoje, houve outras batalhas que tiveram de ser travadas para proteger uma área que se estende por 2300 hectares constituídos por sapais salgados, corpos de água salobra, salinas e esteiros.
“Além dos caçadores, os proprietários existentes aqui na área da reserva olhavam para a reserva como um impedimento do desenvolvimento. Hoje a realidade é completamente diferente”, garante Paulo Monteiro.
Segundo o vigilante da natureza, além da proibição da caça, a criação da reserva natural foi responsável pela união dos salineiros, que formaram uma cooperativa e tiveram de começar a trabalhar em conjunto, facilitando a organização do espaço.
“Evidentemente, também não foi um trabalho fácil convencê-los a trabalhar em conjunto, porque as pessoas têm ideias completamente diferentes. Mas, lá está, foi uma aposta que foi feita e cujos resultados foram bastante positivos”, refere.
Sensibilização ambiental
A trabalhar na reserva desde a mesma altura que Paulo Monteiro, Rosa Madeira lembra como há 37 anos muito pouca gente tinha noção de que ali existia uma área protegida. Desde então, tem sido esse o papel de Rosa Madeira: divulgar a reserva e sensibilizar a comunidade.
Segundo a técnica do ICNF, é a criação da reserva que permite que, actualmente, se possa usufruir daquele espaço, sendo o flamingo uma das espécies mais procuradas por quem visita a área protegida.
Em 2020, a espécie nidificou pela primeira vez em Portugal e o local escolhido foi a reserva que ocupa territórios dos concelhos vizinhos de Castro Marim e Vila Real de Santo António, embora o feito não se tenha voltado a repetir até hoje.
“Também foi um ano atípico, um ano de [pandemia de] Covid-19, em que o turismo de natureza estava resguardado e a zona onde eles nidificaram tornou-se uma zona muito mais tranquila porque são aves que nidificam em colónia”, explica.
De acordo com Rosa Madeira, os flamingos “já fizeram mais algumas tentativas” de nidificação, mas não tiveram sucesso, situação para a qual não há ainda explicação, estando em curso projectos para tentar que a espécie volte a nidificar no local.
Não muito longe, do outro lado da fronteira, em Espanha, o Parque Nacional de Doñana − uma das maiores zonas húmidas da Europa − está a ser seriamente ameaçado pela seca, levando algumas empresas espanholas de passeios a procurar a reserva portuguesa.
“Há empresas de turismo da natureza que neste momento têm vindo para Portugal, porque Doñana teve um período conturbado, e as empresas começaram a apostar no turismo de natureza aqui na zona da reserva, porque era um turismo de proximidade”, relata.
A reserva natural é hoje administrada por uma comissão de co-gestão composta pelos presidentes das autarquias de Castro Marim e Vila Real de Santo António, pelo director regional da Conservação da Natureza e Florestas do Algarve e por representantes da Universidade do Algarve, de organizações não-governamentais de ambiente e associações locais.
Portugal tem nove reservas naturais
A classificação desta primeira reserva natural de Portugal, há 50 anos, pôs em marcha um processo de conservação que foi alargado a outras áreas nacionais ambientalmente sensíveis, existindo hoje nove zonas classificadas como reservas naturais no país.
A criação da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, em 1975, marcou o início de um processo que permitiu que o país preservasse áreas que, de outra forma, teriam sido afectadas negativamente pelas actividades humanas, explica João Alves, do ICNF, entidade responsável pela gestão das reservas naturais nacionais.
“O balanço é claramente positivo, uma vez que, se estas parcelas do território – bem como outras que tiveram outra classificação [como Parque Natural] – não tivessem sido classificadas e protegidas, esses territórios estariam bastante alterados e com certeza para pior”, explica à Lusa o biólogo, que tem 43 anos de experiência e desempenhou cargos de direcção na área.
João Alves descreve que, depois da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António (1975), foram também criadas as reservas naturais do Estuário do Tejo (1976), das Dunas de São Jacinto, do Paul do Boquilobo, do Estuário do Sado e das Berlengas (entre 1980 e 1981), da Serra da Malcata (1981), visando a salvação do lince-ibérico, do Paul de Arzila (1988) e das Lagoas de Santo André e da Sancha (2000).
“As reservas naturais foram classificadas fundamentalmente para proteger sistemas ecológicos sensíveis e, essencialmente, sistemas aquáticos ou de transição, como são o caso dos estuários”, explica o responsável.
Valorizar o território
Esta classificação permite fazer o zonamento cartográfico, valorizar e hierarquizar as várias parcelas do território e dar mais protecção às que são “mais sensíveis e mais valiosas”, mas também criar um “regulamento associado que determina o que é que pode ser feito, onde e como pode ser feito”, observa.
João Alves frisa que “algumas utilizações” desses territórios “podem e devem ser mantidas, com ligeiras alterações, porque muitas vezes são o factor que permitiu que esses territórios tivessem aquelas características”, como acontece com a produção de sal no sapal de Castro Marim.
Estes mecanismos permitiram também, no caso do Estuário do Tejo, intervir junto de indústrias, como a química ou a de metalurgia pesada, para prevenir o despejo de efluentes contaminados no ecossistema, através de relocalizações ou da implementação de sistemas de tratamento que evitem descargas lesivas para os ecossistemas.
“À medida que foi sendo melhorada a qualidade das águas, passou a ser visitado volta e meia por golfinhos”, exemplifica, comparando o Estuário do Tejo com o do Sado, onde a presença da indústria era menor e se “manteve uma população de [golfinhos] roazes corvineiros”, enquanto a do Tejo só reapareceu quando a envolvente melhorou.
Mais-valia para os concelhos
João Alves destaca também a importância que este processo teve para a sensibilização ambiental de todos os intervenientes de um território, incluindo os próprios municípios.
A Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, recorda, foi criada como uma “medida urgente” para “impedir que os sapais do lado português do Estuário do Guadiana continuassem a ser utilizados como depósito, como vazador de entulhos, restos de obras e lixo”, até pelas autarquias.
“Com a classificação da reserva, isto parou e fez-se um trabalho de recuperação, de limpeza, de retirada daquilo que era possível, depois, a natureza encarregou-se, também, de recuperar o resto e, a partir daí, a reserva manteve-se”, destacou, frisando que as autarquias perceberam depois “a mais-valia que era para os dois concelhos terem uma reserva natural”.
Actualmente, são eles “os guardiães da reserva”, através da sua presença na comissão de co-gestão da área protegida, com um “papel determinante na gestão e na melhoria das condições de visitação” do espaço, conclui João Alves.
#Primeira #reserva #natural #país #era #usada #como #lixeira #há #anos #Reportagem