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Soberania digital em jogo: a Europa entre a regra e a dependência

A transferência de dados pessoais entre a União Europeia e os Estados Unidos tornou-se um dos conflitos mais prolongados e intrincados da era digital. Longe dos holofotes das cimeiras e das sanções económicas, esta disputa desenrola-se, sobretudo, nos tribunais e nos bastidores diplomáticos. Em causa não está apenas a privacidade dos cidadãos europeus, mas também a soberania digital da Europa, o poder das grandes tecnológicas e os limites da vigilância exercida por Estados democráticos.

Durante quase vinte anos, empresas como a Meta, Google, Microsoft e Amazon beneficiaram de acordos legais que lhes permitiam transferir dados de utilizadores europeus para servidores situados nos EUA. Estes fluxos são essenciais para a economia digital transatlântica, sustentando desde serviços de email até plataformas de publicidade e inteligência artificial. Tudo mudou, no entanto, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu — em 2015 e novamente em 2020 — invalidar esses acordos, por entender que não garantiam um nível de proteção equivalente ao exigido pela legislação europeia, em particular o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD).

Schrems, Snowden e a justiça europeia

As decisões do TJUE foram impulsionadas por Max Schrems, jurista austríaco e conhecido ativista da privacidade digital. Após as revelações de Edward Snowden sobre os programas de vigilância em massa da NSA, Schrems iniciou uma batalha judicial contra a transferência dos seus dados do Facebook Irlanda para os EUA. O tribunal deu-lhe razão: em 2015, anulou o chamado “Safe Harbor”; em 2020, fez o mesmo com o “Privacy Shield”, sublinhando a falta de garantias eficazes contra o acesso indiscriminado da intelligence norte-americana a dados de cidadãos europeus.

Perante o vazio jurídico deixado pela decisão de 2020, Bruxelas e Washington retomaram as negociações. O resultado foi o EU-US Data Privacy Framework, anunciado em julho de 2023. O novo acordo procurou corrigir falhas anteriores: o Presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva que impõe restrições ao acesso da intelligence norte-americana a dados provenientes da UE, exigindo critérios de necessidade e proporcionalidade. Além disso, foi criado um novo mecanismo de recurso – o Data Protection Review Court – permitindo aos cidadãos europeus apresentar queixas caso considerem que os seus dados foram indevidamente acedidos nos EUA.

A Comissão Europeia considera que este novo enquadramento oferece “garantias substanciais” e representa um passo importante para restabelecer a confiança mútua. Várias empresas norte-americanas apressaram-se a aderir ao novo regime, aliviando o risco de multas elevadas por violações do RGPD – como a aplicada à Meta, em 2023, no valor recorde de 1,2 mil milhões de euros.

Persistem dúvidas e divisões

Contudo, os problemas estão longe de estar resolvidos. Max Schrems já anunciou que pretende contestar o novo acordo em tribunal, argumentando que o essencial permanece inalterado: as reformas implementadas pela Casa Branca são administrativas e reversíveis; o tribunal de revisão criado não é verdadeiramente independente; e continuam em vigor leis como a FISA 702, que permitem o acesso a dados de estrangeiros sem necessidade de mandado judicial.

Na prática, o novo Data Privacy Framework pode ser apenas mais uma solução transitória – um remendo jurídico que adia o inevitável. Muitos especialistas preveem que o TJUE poderá vir a invalidá-lo nos próximos dois a três anos, abrindo caminho para aquilo a que já se começa a chamar

de “Schrems III”. Se tal acontecer, as tecnológicas voltarão a cair num limbo legal e as tensões transatlânticas em torno da soberania digital reacender-se-ão.

Europa entre a norma e a dependência

No fundo, esta disputa reflete um choque mais profundo entre dois modelos políticos e jurídicos distintos. A UE encara a proteção de dados como um direito fundamental e um pilar da sua identidade normativa. Os EUA, por sua vez, têm uma abordagem mais pragmática, subordinando a privacidade aos imperativos da segurança nacional e da competitividade económica. Esta clivagem torna quase impossível alcançar um compromisso duradouro que satisfaça ambas as partes – sobretudo num contexto em que os dados se tornaram o novo recurso estratégico, comparável ao petróleo do século XXI.

Paralelamente, este conflito demonstra como o poder geopolítico já não se exerce apenas por via militar ou económica, mas também através da regulação. Ao impor os seus padrões ao mundo – o chamado Brussels Effect – a UE posiciona-se como uma superpotência normativa. Mas esse poder depende da capacidade de fazer valer juridicamente os seus princípios, mesmo perante aliados. A instabilidade legal nas transferências de dados mina a confiança dos cidadãos e trava colaborações em inovação tecnológica, especialmente em áreas como inteligência artificial ou computação em cloud.

Face à incerteza, alguns Estados-membros – como a Alemanha – ponderam já medidas de precaução, como o armazenamento exclusivo de dados em solo europeu ou o recurso a infraestruturas tecnológicas próprias, como o projecto “Gaia-X”. Outros investigam soluções descentralizadas que dispensem as grandes plataformas de cloud norte-americanas.

O futuro da soberania digital europeia

A verdadeira questão é: poderá a Europa afirmar-se como uma potência digital autónoma? Ou continuará a navegar entre a hegemonia regulatória e a dependência tecnológica?

No plano global, esta disputa insere-se numa dinâmica mais ampla. A multipolaridade digital está a emergir com força: a China avança com um modelo centralizado e estatal, os EUA continuam a dominar pela inovação e escala. Já a Europa tenta erguer-se como superpotência normativa. Mas o tempo joga contra a UE. Mais uma vez, a lentidão dos seus processos e a fragmentação interna contrastam com a agilidade dos rivais.

A batalha pelos dados é apenas o começo. Em breve, o confronto será pelo controlo dos algoritmos, das infraestruturas quânticas, dos padrões de inteligência artificial. E nesse mundo novo, quem definir as regras não terá apenas vantagem económica, terá poder geoestratégico.

Os tribunais podem ser o palco imediato, mas a disputa é mais vasta. Está em causa o equilíbrio entre inovação, vigilância e liberdade. E, sobretudo, o lugar da Europa no novo mapa do poder digital.

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