Quando tem de traduzir a sua vida, um pai de uma filha autista sente o mesmo que um tradutor de língua japonesa: talvez seja impossível traduzir o japonês para uma língua ocidental, porque é como tomar banho de gabardine. Como todos os outros pais, eu também entro no chuveiro, mas tenho à minha volta um oleado que faz do meu duche uma experiência intraduzível. Por falar em duche, tenho pensado num filme que vi há muito tempo, não me lembro do título ou da história. Sei apenas que a personagem tem uma doença rara (real ou imaginada): a água magoa-a; tomar duche é como estar debaixo de uma chuva de agulhas. É uma boa metáfora para o autismo: o que parece natural pode magoar muito. Ser autista é ser magoado pela água, pela luz, pelos cheiros, pelos sons, pelo toque — tocar na minha filha mais nova é uma arte que só é dominada por mim e pela minha mulher. Se tocarmos na altura errada e/ou com a pressão errada, pode rebentar uma erupção, que até pode ser um vulcão de riso, sim, mas até a energia gasta pela felicidade pode ser problemática. Acontece muitas vezes: ela está a ter um fim de semana de júbilo e, apesar de ficar feliz por ela, fico ao mesmo preocupado com o dia seguinte, que vai ser terrível. A paternidade normal é um jogo de damas, este é um jogo de xadrez em 3D. O autismo desafia a ideia de que este é o habitat certo para o homo sapiens. É como criar um urso polar na savana. Pode um urso polar sobreviver na savana? Pode, se tiver sempre ao seu lado uma carrinha de gelo. A família de um autista é essa carrinha de gelado no deserto que torna possível a sua vida “normal” e feliz. Eu, a minha mulher e a nossa outra filha somos essa carrinha gelada no deserto.
#Uma #carrinha #gelados #Expresso